Faltam 'Limites' às Crianças de Hoje?

No mundo contemporâneo as relações familiares tendem assustadoramente a empobrecer-se mais a cada dia, acentuando tendência manifesta desde os inícios da revolução industrial há uns 200 anos, seja devido às jornadas excessivamente longas de trabalho, seja pelo massacre de interesses individuais imposto pelos totalitarismos de vários matizes e discursos, no tristemente bélico século XX.

A convivência nos núcleos familiares, desde sempre privilegiadíssimo nicho de formação social e ética, desestruturou-se seriamente desde a invasão avassaladora da TV na vida humana, pois esta dominou a cena nos poucos momentos em que a pais e filhos ainda se permitia a proximidade física, a simples presença.
Dos serões em que genitores, avós, parentes e vizinhos interagiam com crianças, passou-se a uma relação mediada pela programação televisiva: sentados num sofá, com olhar passivo e sem crítica, todos passaram a manter seu foco de atenção dirigido à tela comum, com um nível mínimo de esforço, nada propício a emitir juízos próprios acerca do conteúdo, via-de-regra maquiavelicamente talhado para induzir comportamentos de massa, capazes de gerar lucros imensos, sejam monetários, sejam político-ideológicos.
Num excelente filme de de Wim Wenders, "Hotel de Um Milhão de Dólares" (de 2000), o proprietário de uma rede mundial de emissoras, afirma que "a realidade factual deste planeta é produzida" por seus canais de TV, e tida como verdade absoluta por imensa maioria  da população global, que só tem contato com realidades moldadas pela perspectiva que convém aos seus interesses.

Setenta anos depois da inauguração da TV Tupi de São Paulo, impressiona o quanto a imposição de valores, efetuada desde sempre, mas cada vez mais dilapidada e eficiente pelas maiores redes nacionais de emissoras, estilhaçou o que restava da transmissão familiar de modos de ver o mundo e de nele encontrar o melhor caminho pra si mesmo. Das relações domésticas parece manter-se nada mais que um arcabouço jurídico e formal de parentesco, embora nas interações afetivas pai-mãe-filhos-tios-avós-vizinhos se note uma perda de consistência crescente, dado que vão se tornando desprovidas de seu potencial de formação do caráter de futuros cidadãos conscientes de direitos e deveres.

Hoje, o convívio desestruturado vai se liquefazendo, com a avalanche de informações trazida pela internet, e os contatos humanos em geral vão perdendo a relação com quaisquer sentimentos pessoais profundos. As já parcas interações afetivas em família pulverizam-se(Z. Bauman).

A grande maioria das mães e dos pais dedica hoje uma fração ínfima de seu tempo para a atenção exclusiva e intensa a seus filhos.

O vazio familiar é trágico, pois a mais firme incorporação das regras de convívio por quaisquer crianças só pode efetivar-se quando, graças a sentir-se amada incondicionalmente, ela confia nos que dela cudam, e se identifica com eles. Sente-se segura, então, para acatar suas ordens, mesmo quando ainda nada entende sobre seus motivos.

Por isso, quando, e se, um dia uma pretensamente  "maravilhosa, benfazeja" revolução tecnológica puser robôs pra ensinar limites às crianças, o resultado será desastroso. O pobre tequinho de gente, novato neste mundo, NADA aprenderá, e vai sentir-se torturado, exceto se conseguir fugir deles, ou se morrer logo.

A tão falada, famigerada,"falta de limites" das crianças de hoje é filha de forte desestruturação das relações afetivas.

Nesse contexto, enrijecer normas e fortalecer as modos de cobrar obediência a elas, como até alguns profissionais de psicologia e psiquiatria chegam a defender, mas manter o atual e global simulacro de família, só pode gerar futuros adultos servis e infelizes.
Lúgubre fábrica de escravos mansos.

Outra postagem deste blog 'Presença, Papéis Sociais e Educação Infantil' complementa esta.