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July 9, 2021

Devir, 'Eterno Retorno', e 'A Terceira Margem do Rio' ***, de João Guimarães Rosa

 "(…)o eu pessoal precisa de Deus e do mundo em geral. Mas, quando os substantivos e adjetivos põem-se a fundir, quando os nomes de parada e os de repouso são arrastados pelos verbos de puro devir, e deslizam na linguagem dos eventos, toda identidade se perde para o eu, para o mundo e para Deus."                        Deleuze, Gilles, em Lógica do Sentido, tradução livre. 
“Mas então, ao menos, que no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.” 
             Trecho de 'A Terceira Margem do Rio', da Coletânea 'Primeiras Estórias', de Guimarães Rosa.
 
Imersos na ilusão dos tempos e dos espaços, homens e mulheres encontram-se, apaixonam-se, têm filhos, desencontram-se, odeiam-se: 
“cê vai, ocê fique, você nunca volte!”
diz a mãe do narrador ao pai que parte.
Numa margem do São Francisco, o filho o vê partir. Não para outra casa, não para outro amor, não para outros encontros ou outros filhos. Em sua pequena canoa, vai para o meio do rio, e, sempre a remar, lá permanece por horas, dias, meses, anos, décadas, pela vida toda. A “terceira margem” não é parte alguma, não existe na estreita compreensão dos seres racionais que somos. Significa abandono das coordenadas da identidade do Eu, mergulho no “devir puro” de que nos fala Deleuze.
Numa margem do louco devir, aqui simbolizado pelo rio São Francisco, imerso nessa ilusão humana chamada espaço-tempo, o Eu-Pai se havia assentado e reproduzido.
Ao abandonar a família, sua identidade própria se perde, se dissipa, se desintegra, assim como em meio à corrente d'água toda firmeza dos barrancos se desfaz, e flui em incessante transformação, vindo-a-ser, devindo diversa a cada instante. Nada é. Não há presente, nem passado, nem futuro, tão só o eterno retorno, essência do devir, em que as 'dimensões' temporais se mesclam, se embaralham. Devir louco!
À margem, porém, permanecem seus filhos, a mãe deles, suas terras. Nada disso toca aquele incansável remador. 
Chega o dia em que mulher e filhos abandonam aquela casa ribeirinha, indo-se dali pra sempre, exceto pelo filho narrador da estória, incapaz de esquecer o pai ali em meio à correnteza, tão solitário. E seu destino parecia ser assemelhar-se cada vez mais a ele:
“Às vezes algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. (..) eu falava -- Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim...” 
Chega um tempo em que há apenas três personagens: filho, pai – já há décadas em meio às correntes d'água – e o próprio rio. Em meio a este, nada é igual, só a diferença flui. Ao deligar-se de tudo e de todos, Pai abandonou também a representação de si mesmo, em que se reconhece idêntico. Talvez por já não tolerar ver a si próprio nos rótulos e carimbos que a vida em comum impõe a todo ser humano, mergulhou no fluxo perpétuo das diferenças, no fluxo caótico do rio. Ao deixar filhos, mulher, bens, desfez-se de sua mais estabelecida máscara: seu próprio Eu.

Em meio ao puro devir, não subsistem quaisquer máscaras, pois tudo é só fluxo inexorável de diferenças no turbilhão dos instantes. O conceito de tempo está posto em cheque, já que perde qualquer nome: nem presente, nem passado, nem futuro, mas apenas retorno eterno do devir, do vir-a-ser, do tornar-se diferente. Não há, nem lugar nem momento para o comando do Eu (Ego), ou do Supra-Eu (Super-Ego). Desfeitos os limites do mundo, na terceira margem, no devir-louco (devenir-fou), dissolvem-se forçosamente os limites do Eu. Sem Eu não há mundo, sem mundo não há Eu. Pulsaria quem sabe apenas o 'Isso'( das Es, Id, le Ça ), mas não o freudiano, uma vez que falar de existência privada pessoal fica desprovido de qualquer sentido:

“Ça fonctionne partout, tantôt sans arrêt, tantôt discontinu. Ça respire, ça chauffe, ça mange. Ça chie, ça baise. Quelle erreur d'avoir dir le ça!”        Deleuze-Guattari: L'Anti-Oedipe ( O Anti-Édipo)
“Isso funciona por toda parte, ora sem cessar, ora com interrupções. Isso respira, isso esquenta, isso come. Isso caga, isso transa. Que erro ter dito o Isso!” Tradução própria da citação acima.
À margem, porém, ficou o Outro-Eu, o que restou, o filho, que lhe traz alimentos, como a exigir que prossiga corporalmente vivo, ainda que ausente do mundo quotidiano, privado e delimitado dos documentos de identidade. Aqui um ponto de tensão que percorre esse belo conto: o narrador é o que restou do Eu de seu pai, é sua ponte com uma realidade já rejeitada de modo radicalíssimo, rumo a qual parece já não haver qualquer retorno possível. Tensão que só cresce, até um ponto em que o filho, já envelhecido, se compadece, e decide assumir o posto do pai como remador em meio à correnteza. Grita à beira d'água:

“Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." 

O filho parece decidido, pois, a mergulhar no devir-louco, desde que o pai lhe ceda o lugar. Clímax do conto, a oferta é aceita:
“Ele me escutou. Ficou de pé. Manejou remo n’água, proava pra cá, concordado.” 
Assustadíssimo, o filho foge para nunca mais voltar. E alega, pra sua própria consciência, ter fugido por temer que o pai viesse “da parte do além”.
Aquela marca que Pai havia deixado no mundo, o filho narrador, Outro-Eu, recusa o convite do rio do devir-louco. Permanece empírico, temporal, quotidiano, envelhecido e a morrer só aos pouquinhos –“cadáver adiado que procria"?**** --, homem qualquer, homem pequeno, real, limitado, delimitado, medíocre, ein Viel-zu-vieler, alguém que está a mais no mundo.
Em suas próprias palavras:

“Sou homem depois desse falimento?”

                Ω

(*** Conto narrado em primeira pessoa, parte da coletânea Primeiras Estórias, publicada em 1962.)
****Verso de poema de Fernando Pessoa, Cancioneiro: 'D. Sebastião, Rei de Portugal'.

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