"Os paulistas são uma raça pura,
Não são melado, não são mistura!"
Tive o privilégio de participar como ator na primeira montagem de 'Rei Momo', no grupo de teatro do CA XI de agosto, quando estudei por um ano na Faculdade de Direito da USP, Largo de São Francisco. Mudei meu rumo acadêmico, e ingressei na Faculdade de Medicina da mesma universidade. Um belo dia, me peguei cantarolando esses versos fortemente sarcásticos, à toa, só porque a melodia me veio à mente, quase sem que eu percebesse.
Uma namorada, pessoa muito querida, ouviu e fez cara feia! Ela não percebera a intenção implícita de ridicularizar o racismo dos descendentes contemporâneos dos caboclos que compunham as bandeiras paulistas. Mudei de assunto. Explicar sarcasmo é sempre uma tolice! Esta lembrança remete ao tema título deste ensaio.
Como é sabido, de 1890 a 1960 chegaram a São Paulo milhões de imigrantes europeus, bem como de japoneses, além de um menor número vindo de outras partes do mundo. A cidade e o estado de São Paulo tiveram de acomodar, em poucas décadas, uma enorme massa estrangeira de gente pobre, e sem emprego, muitos deles nutrindo fantasias de enriquecimento fácil.
Os italianos eram os mais numerosos, logo chamados de 'carcamanos'. De Portugal vieram também multidões, mesmo sendo nação bem menos populosa que a Itália. Os que vinham do leste europeu, que fugiam das guerras infindáveis, eram chamados pejorativamente de 'bichos d’água'. O preconceito das elites da terra brotou forte, e logo se espalhou por toda a população. Exemplo é a palavra polaca, que virou sinônimo de prostituta, e como esse, outros apelativos depreciativos proliferaram. Diante da massa imigrante, que consideravam 'gentalha', as famílias paulistas, brasileiras já há séculos por aqui, apesar de se alegarem falsamente 'brancas', torciam o nariz quando alguém lhes perguntava de que terras distantes teriam vindo seus antepassados.
Conheci de muito perto uma pessoa dessas: se lhe perguntavam de qual país vieram seus antepassados, invariavelmente respondia: "nossa família só tem antepassados brasileiros!" Ao meu questionamento, apontando que ela necessariamente descendia de algum povo europeu, pois isso era uma evidência física, e que até mesmo seu sobrenome familiar típicamente ibérico comprovava, reiterou:
'Não, não! Só brasileiros!'.
Pasmo, insisti, estranhando muito que nem reconhecia a origem óbvia de seu próprio sobrenome. Depois de muito por em cheque o que dizia, pouco me importando se usava de chatice provocadora, saiu com essa:
"Bem, sim, uns primos meus fizeram uma pesquisa em cartórios, e parece que bem lá longe, a perder-se de vista no passado , há sangue espanhol.”
Fiquei pensando: “não, a Neusa não está delirando! Só não entendo por quê, sendo culta, inteligente e bem falante, sente necessidade de renegar suas origens de modo tão bizarro”.
Matutei, e a solução desse quebra-cabeças saltava aos olhos: o 'horror paulista a imigrantes' da primeira metade do século XX explicava a atitude de Neusa.
Estranhei muito, pois minha interlocutora, que era comunista de 'carteirinha', mostrava-se elitista, embora jamais pudesse admiti-lo.
Nem só Neusa me presenteou com seu elitismo xenófobo:
Há uns anos, estive sob os cuidados de uma profissional paramédica, bonita, loira, de uns 30 anos. Politicamente, seu palavrório político era o oposto do Neusa: de direita, precursora dos Bolsonaros. Disse-me algo como:“é evidente que a Europa e os Estados Unidos não podem tolerar essa invasão de imigrantes, têm de acabar com isso!” Era um ano eleitoral, e afirmava o grandiloquente slogan: 'minha bandeira não tem vermelho!', além de coisas quetais.
Até que, papo vai, papo vem, numa sessão lhe perguntei: “você descende de alemães, italianos, ou nórdicos?”
Repudiou-me a pergunta, e, altiva, respondeu:
Até que, papo vai, papo vem, numa sessão lhe perguntei: “você descende de alemães, italianos, ou nórdicos?”
Repudiou-me a pergunta, e, altiva, respondeu:
“Não, não, nada disso! Só há brasileiros entre meus antepassados!”
Que ridículo absurdo! Suspeitei que havia por trás disso aquela mesma negação preconceituosa do óbvio, que ouvira de Neusa, anos atrás. Pouco me importando com parecer um chato, argumentei que, em vista de seus traços físicos, zero porcento ameríndios, ela descendia, sim, de europeus. Cheia de dedos, ela respondeu assim:
“Bem, sim, uns primos meus pesquisaram em cartórios, e parece que bem lá longe, a perder-de de vista no passado, há sangue espanhol.”
Como nada indica que essa loira e Neusa se tenham um dia se encontrado, menos ainda que possam ter qualquer parentesco, fui levado a supor que esse “sangue espanhol, lá bem longe no passado[com reforço idêntico na entonação desse longe]” deve ter sido ensaiado pelas famílias paulistas do início do século passado, e até mesmo inculcado e transmigido pras novas gerações. Pretendiam assim exorcizar a pecha de serem confundidos com 'portugas, carcamanos, mafiosos, polacos, bichos d’água, judeus, etc'.
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