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September 26, 2020

Ulisses no Pacífico

Num meio-dia de fim de outono, a embarcação japonesa zarpou de Shimonoseki, porto a meio caminho entre Hiroshima e Nagasaki, rumo aos mares da Antártida, aquele continente gelado, 
inabitável e sem dono. Super-equipada como nenhuma outra antes, portava refinado aparato tecnológico: sonares, radares, drones, arpões-guiados por infravermelho, etc. Satélites em órbita localizariam os bandos de animais por abater, facilitando ainda mais sua missão. Havia expectativa de que trouxesse grande aumento de lucratividade à indústria de caça a baleias, cujos poderosos controladores ainda insistem em alegar motivada por “interesse científico exclusivo”.
Logo após passar pelo equador terrestre, o comandante de nome ocidental, Ulysses Akira Nakama, teve um sonho de imagens muita vívidas, em que uma sensualíssima mulher chamada Circe, após oferecer lauto banquete a todos os tripulantes, lhes alertava sobre um grave risco, logo à espreita de sua embarcação, que viria como um canto melífluo, inebriante e irresistível mas fatal, a que nenhum homem jamais sobrevivera.
O comandante despertou assustado, sem razão, pois logo se lembrou daquele episódio da ‘Odisséia’, em que Homero narra as aventuras e desventuras do herói grego, que, ao retornar da guerra de Tróia, perdeu-se e vagou por 10 anos pelo Mediterrâneo, enquanto sua mulher Penélope, fiel, tratava de distrair seus inúmeros pretendentes com infindáveis pretextos para sua recusa. Não que este Ulysses nipônico tivesse interesse maior por literatura, nem pela Grécia Antiga. Conhecia um pouco da epopéia, dado que, tendo nome bem raro em seu país, desde a escola básica era frequentemente questionado a respeito.
Sua mãe decidira assim chamá-lo após assistir a uma produção hollywoodiana sobre Penélope, com quem se identificara muito, talvez porque a avó do comandante, nem mesmo décadas depois perdera a esperança de que Tadao, seu avô, retornasse vivo do mar após desaparecer a serviço da marinha imperial na Segunda Guerra.
“E porque me puseram um nome tão ocidental, acabo tendo sonhos agitados, neste oceano tão lindo e tão japonês, o Pacífico, já em pleno início deste verão austral!”  
Sonho e reflexões em torno a seu nome foram logo esquecidos, pois já havia muito trabalho com dezenas de baleias detectadas pelos radares, a rumar para uma ilha rochosa, cujo nome nem constava dos mapas. Marinheiros caçadores ficam sempre muito excitados ao encontrar tantas presas fáceis, talvez  isso explique por quê, após circundarem a ilhota, aqueles inúmeros cetáceos desapareceram tanto da visão de todos, quanto dos radares, e até dos drones a sobrevoá-los. Teriam tido uma miragem coletiva?
Ainda sem crer no súbito sumiço, o comandante ordenou aproximação máxima da ilha dos penhascos, de onde provinha um canto, com deliciosa melodia.
“Ah, não, serão de novo aqueles loucos do Greenpeace?
Dificilmente – corrigiu-se -- pois só há mulheres cantando! E são lindas!”
“Comandante Ulisses Tadao, devo dizer que se reparar bem, verá que não são mulheres!” Corrigiu-lhe o capitão Toshio.
De fato, não eram mulheres, mas sereias, e Tadao pôde entender então seu próprio sonho, pois tudo ali repetia aquele episódio em que o poeta Homero narra a advertência de Circe ao herói grego. Diante disso, ordenou que todos os seus homens tapassem os ouvidos, o que fizeram prontamente, ao mesmo tempo em que lhe atavam firmemente a uma haste de radar.
A melodia cantada pelas sereias convidava Ulisses Tadao a alterar a direção do fluxo do tempo, num mergulho fantástico e maravilhoso rumo ao passado, levando aquela tripulação assassina de baleias a viver eternamente, já que só no futuro pode haver morte.
O comandante, que detestava ser chamado de egoísta, decidiu compartilhar todo aquele êxtase com seus homens, e por mensagem digital lhes ordenou que liberassem seus ouvidos. Todos puderam, então, ter o privilégio de deixar-se tomar por completo pelo paradisíaco canto.
Enfeitiçados por dezenas de gigantescas baleias, tornadas lindas sereias, a embarcação deste Ulisses navega pelo Oceano Pacífico rumo aos milênios do passado, por toda a eternidade pretérita.

Este conto é parte do romance 'A Última Coruja', (já disponível na amazon.com.br)como um dos relatos da seção que tem o título de 'Expulsando os Descendentes de Noé'.
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