Em 26/9/2017*, impedi o suicídio de um homem de cerca de 45 anos numa estação de metrô de São Paulo.
Muito cansado, só na manhã seguinte, segunda-feira, acionei a seguradora, cujo borracheiro constatou ausência de estepe, roubado durante minha estada no litoral.
Laura Alice, minha filha, então com 6 anos, estava na casa da avó junto de sua mãe, e teve um pico de febre alta. Dado que não pude resolver o problema do pneu naquele mesmo dia, chamei um carro do Uber para ir ao encontro delas, e examinar minha menina.
Cheguei ao apartamento de sua avó, no bairro do Brás, às 22:15. Laura já estava bem, e às 23:30 decidi voltar pra casa de metrô, apesar de certa preocupação com a segurança desta caótica cidade. Nos tempos de faculdade, eu fazia longas caminhadas pelas madrugadas, com prazer e tranquilidade.
Os arredores da estação Brás, como de tantas outras, mostram sinais de decadência urbana, mas após a catraca já não tive por que me preocupar com assédio de pedintes, ou com outros eventos geradores de constrangimento ou insegurança.
A caminho da plataforma de espera do trem que segue no rumo oeste, vindo de Itaquera, iam essas 7 pessoas:
a)Um homem forte, de pouco mais de 40 anos, que se dirigiu sozinho para a extremidade em que pára o primeiro vagão, onde fica a cabine do condutor;
b)Mais 5 pessoas esparsas, distribuídas ao longo da metade da plataforma pra trás, isto é, na extremidade oposta de embarque;
c) Eu, o sétimo.
a)Um homem forte, de pouco mais de 40 anos, que se dirigiu sozinho para a extremidade em que pára o primeiro vagão, onde fica a cabine do condutor;
b)Mais 5 pessoas esparsas, distribuídas ao longo da metade da plataforma pra trás, isto é, na extremidade oposta de embarque;
c) Eu, o sétimo.
Como nunca fizera esse trajeto de metrô, pensei comigo: "se esse cara, que pouco falta pra ser um Popeye de músculos, prefere embarcar junto da cabine, no primeiro vagão, provavelmente a estação República (onde eu pretendia descer) tem uma escada de acesso à saída pra rua nessa ponta do comboio."
Dado que teria que aguardar alguns minutos, fui dar uma olhada no mapa de conexões entre os meios de transporte da monstruosa região metropolitana de Sampa com as várias linhas subterrâneas, de modo que, mesmo estando a não mais que três metros daquele fortão, ele não pôde me perceber ali, e na certa imaginava estar a mais de 30 metros de qualquer outra pessoa.
Até que ouço a composição se aproximando a certa distância. Ao desviar o olho dos mapas, pra ir pra beira da plataforma de acesso, ouvi gritos vindos do outro lado dos trilhos, dali onde se embarca rumo à direção leste: "VAI PRA TRÁS, CARA! SAIA DAÍ! ALGUÉM TIRE ESSE HOMEM DAÍ! CHAMEM O SEGURANÇA!"
Gritavam pra tentar convencer o fortão, mas também se dirigiam a mim, o único em condições de fisicamente fazer algo pra que ele não fosse destroçado pelo violentíssimo choque já iminente.
Pensei rápido: "Se tentar segurá-lo posso ser arremessado pra vala junto, bastando que ele me puxe." Decidi agarrar com o braço esquerdo uma barra de metal, dessas cuja função é pôr ordem no embarque nas horas críticas da superlotação de passageiros. Com a mão direita, puxei aquele homem pelo antebraço com toda firmeza.
Sua estratégia de suicídio não era jogar-se inteiro na vala, certamente porque o condutor, ao vê-lo, poderia frear a tempo. Com o resto do corpo pra trás, ele só deixaria a cabeça pra dentro da vala do trem. Seria decapitado, pois não seria visto a tempo. Desconheço o sistema de câmeras de vigilância da plataforma, e não pude saber se seu triste plano de morte levou em conta tais imagens.
Agarrando-o pelo braço, puxei-o aos gritos: "está passando mal? Saia daí! Não fique aí caído, não!" De início, porém, resistiu, e espichou mais a cabeça direção fatal. Gritei: "venha alguém me ajudar, ele não está conseguindo levantar". Esta última frase, com o verbo "conseguir" foram calculadas: em nenhum momento duvidei de que tentava suicidar-se, não se tratando em absoluto de um mal-estar físico.
Pensei rápido: "Se tentar segurá-lo posso ser arremessado pra vala junto, bastando que ele me puxe." Decidi agarrar com o braço esquerdo uma barra de metal, dessas cuja função é pôr ordem no embarque nas horas críticas da superlotação de passageiros. Com a mão direita, puxei aquele homem pelo antebraço com toda firmeza.
Sua estratégia de suicídio não era jogar-se inteiro na vala, certamente porque o condutor, ao vê-lo, poderia frear a tempo. Com o resto do corpo pra trás, ele só deixaria a cabeça pra dentro da vala do trem. Seria decapitado, pois não seria visto a tempo. Desconheço o sistema de câmeras de vigilância da plataforma, e não pude saber se seu triste plano de morte levou em conta tais imagens.
Agarrando-o pelo braço, puxei-o aos gritos: "está passando mal? Saia daí! Não fique aí caído, não!" De início, porém, resistiu, e espichou mais a cabeça direção fatal. Gritei: "venha alguém me ajudar, ele não está conseguindo levantar". Esta última frase, com o verbo "conseguir" foram calculadas: em nenhum momento duvidei de que tentava suicidar-se, não se tratando em absoluto de um mal-estar físico.
Tempo, pra que alguém viesse me ajudar a tirá-lo dali, não havia nenhum! A vida dele dependia exclusivamente de minha presença ali.
Cedendo a meu esforço e às poucas palavras ditas, aquele desconhecido ergueu-se, ficou em pé. Instantes depois o trem parou no local esperado, as portas se abriram. A expressão de seu rosto era tensa e sinistra como jamais vi, reveladora de dor extrema, de um desespero muito amargo, mas gélido. Nem um traço de sua expressão se dirigia a ser visto, como nas tentativas dramatizadas de certos falsos suicidas. Estava lívido, e seu olhar era aterrrador.
Em tom ríspido de comando eu lhe disse:
"Vamos, tome esse vagão já, junto comigo!"
Obedeceu.
Não trocamos mais nenhuma palavra. Suicidas detestam que se fique, pelo menos de imediato, a lhes aconselhar com o velho "deixa-disso", ou " o que é que te fez querer se matar", "tristeza passa, e a vida é bela". O único efeito possível desses conselhos ali seria aumentar sua convicção por morrer logo.
Tudo o que pude fazer foi fingir ter pensado que ele havia tido uma queda por pressão baixa, ou algo assim. Estou quase cert9o de que essa foi a imagem que levou do socorro que pude prestar-lhe.
Desembarquei ao chegar na República, ele prosseguiu no trem.
Cedendo a meu esforço e às poucas palavras ditas, aquele desconhecido ergueu-se, ficou em pé. Instantes depois o trem parou no local esperado, as portas se abriram. A expressão de seu rosto era tensa e sinistra como jamais vi, reveladora de dor extrema, de um desespero muito amargo, mas gélido. Nem um traço de sua expressão se dirigia a ser visto, como nas tentativas dramatizadas de certos falsos suicidas. Estava lívido, e seu olhar era aterrrador.
Em tom ríspido de comando eu lhe disse:
"Vamos, tome esse vagão já, junto comigo!"
Obedeceu.
Não trocamos mais nenhuma palavra. Suicidas detestam que se fique, pelo menos de imediato, a lhes aconselhar com o velho "deixa-disso", ou " o que é que te fez querer se matar", "tristeza passa, e a vida é bela". O único efeito possível desses conselhos ali seria aumentar sua convicção por morrer logo.
Tudo o que pude fazer foi fingir ter pensado que ele havia tido uma queda por pressão baixa, ou algo assim. Estou quase cert9o de que essa foi a imagem que levou do socorro que pude prestar-lhe.
Desembarquei ao chegar na República, ele prosseguiu no trem.
Eventos improváveis em cascata
Já em casa, me pus a pensar na seqüência de fatos, todos muito improváveis, que precederam esse tenebroso salvamento. Se qualquer dos fatos aleatórios enumerados a seguir não tivesse ocorrido, aquele Popeye suicida teria sido decapítado:
1) O furto ocorrido em Itanhaém, por certo na madrugada de domingo. O ladrão foi muito esperto e rápido, e dado que o estepe fica oculto sob o porta-malas no meu carro, nada notei de imediato;
2) O pneu ter furado na viagem de retorno, mas só já muito perto de casa. Se furasse mais longe, eu teria sido obrigado a trocá-lo logo, e toda esta história teria tomado outro rumo;
3) Minha filha estar tendo picos febris na casa de sua avó já há 3 noites, e sua mãe ter optado por só me falar disso, por telefone, na segunda quando eu já estava em casa;
4) Eu, exausto, ter decidido só agendar o guincho da seguradora para a manhã de terça;
5) Apesar do direito a carro reserva constar de minha apólice, eu não o ter solicitado, não sei porquê;
6) Mesmo um tanto receoso, ter decidido tomar o metrô pra voltar pra casa. Quase chamei outro Uber, mas algo me fez mudar de ideia.
7) Ao chegar à plataforma, ter-me dirigido pra mesma direção do Popeye desconhecido, mas dada minha obsessão por mapas, ficar fora do seu campo de visão. Quantos passageiros contemplam mapas dos transportes paulistanos à meia-noite?
O acaso, seu papel na existência humana, dá muito no que pensar.
Por outro lado, seu rosto, dominado pela amargura daquela firme e tenebrosa decisão, me parecia dizer que vivia as consequências de um violento choque de visões de mundo: de um lado a formação tradicional da gente simples, resultado de tantos séculos, milênios de sedimentação de costumes familiares e sociais; de outro lado a enxurrada de valores tão opostos a esses alicerces básicos de toda essa tradição enraízada na história de nossas sociedades ocidentais, e em boa parte das orientais também.
As assim chamadas "vanguardas intelectuais" globalizadas destes nossos tempos, sempre radicalmente questionadoras, assentadas em teorias psicológicas, sociológicas, recentes.
Senhoras e senhores "revolucionários vanguardistas", cuidado pra não retirar de repente o pouco sentido que tem a vida dessa gente humilde, que sequer compreende esse mundo intelectualizado, onde germinam as constantes, infindáveis revisões teóricas sobre como se deve viver, educar, amar e ser livre. Claro que há muito que melhorar na tradições atávicas, mas não convém ter tanta pressa. Usando uma imagem surrada mas bem própria aqui, "não joguem fora o bebê com a água do banho!"
A verdade definitiva, enfim, não está com vocês, e não está com ninguém, pois não faz sentido falar em pontos finais seja em cência seja em filosofia! Parem de lançar com arrogância suas "verdades modernas", como jatos de vômitos, pra cima das multidões que sequer compreendem a linguagem de vocês. Por mais errônea que possa ser a visão de mundo das gentes, ela sae ergue sobre um conjunto de avaliações profundamente enraizadas em suas histórias concretas de vida. Sua perda súbita pode talvez retirar todo sentido possível da existência de bilhões de pessoas.
XXX
*PS: Setembro de 2017 foi mês dedicado internacionalmente à conscientização e prevenção do suicídio.
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*PS: Setembro de 2017 foi mês dedicado internacionalmente à conscientização e prevenção do suicídio.
O autor deste blog sugere a leitura de "A Última Coruja", romance, do qual se pode ler uma amostra clicando nesta frase.
Or for the same novel in English, just click:
The Last Owl.
Oppure in italiano, lo stesso romanzo:
L'Ultima Civetta.
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