Sem vida, sem morte material, uma ideia,Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feiaUma sombra num chão irreal, um sonho num transe."Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Numa dessas incontáveis madrugadas de minha insônia, em que as horas se abreviam nas badaladas dos relógios da cidade, criei um novo jogo, na esperança de talvez adormecer. Já não seriam os inúteis carneirinhos, visto que têm o desagradável efeito de despertar-me ainda mais quando seu número passa das dezenas para a casa das centenas, de dois para três dígitos. Tampouco iria ater-me ao exercício, outrora gratificante e eficiente, de percorrer os mapas dos continentes, a imaginar nações, cidades, rios, serras ou cordilheiras. Nem mesmo os elegantes contornos da Ásia e da África, onde minha memória mais titubeava (este o segredo do drible ao estar desperto) poderiam mais ajudar-me. Há tempos que evocavam imagens de guerras inacabáveis, miséria, multidões famintas. Lembranças que, obviamente, nada têm a ver com a nobre arte de adormecer.
Nessa noite haveria de conseguir dormir! Recorri ao artifício de criar histórias, em que figuro ora como protagonista, ora como esta ou aquela personagem, ou às vezes apenas como narrador.Como me fiz, a um só tempo, protagonista e espectador único de meus relatos, tornei-me capaz de mesclar todo o meu ser com eles, criando, assim, entes meio-homem-meio-histórias, plasticamente entremeados. Se lhe parecer absurdo, leitor, compare-os com seus sonhos. Não tive qualquer pretensão de me manter distante do sem-sentido. Tornei-me capaz, também, de representar duas ou mais figuras ao mesmo tempo. Para tanto, bastou que eu simpatizasse com tais desdobramentos. Final e totalmente livre de qualquer amarra que me intimidasse diante de leitores, voyeurs, ou mesmo diante de espelhos (estava na escuridão total da lua nova), mergulhei-me no contar.
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