A MENTE DOS BEBÊS!
(Texto Extraído da revista NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL, janeiro de 2015)
O cérebro de um bebê precisa de amor para se desenvolver. Por isso, o primeiro ano explica quase tudo o que somos
por Yudhijit Bhattacharjee
Os gêmeos Felix e Viva Torres, com 7 meses e meio, absorvem a vista e os ruídos de Greenwich Village, em Nova York. Eles estão acostumados a ouvir duas línguas em casa.
No final da década de 1980, quando uma epidemia de crack assolava as cidades americanas, a pediatra Hallam Hurt, da Filadélfia, começou a se preocupar com os recém-nascidos de mães viciadas. Concentrando-se em famílias de baixa renda, ela e seus colegas compararam crianças de 4 anos que tinham sido expostas à droga com outras cujas mães nunca haviam se drogado. Nenhuma diferença foi encontrada. Por outro lado, eles constataram nos testes que, em ambos os grupos, a inteligência das crianças estava bem abaixo da média. "Essas crianças pequenas eram fisicamente perfeitas e até mesmo bonitas, mas seus QIs giravam em torno de 82, 83", conta Hunt. "E o QI mediano é 100. Foi chocante."
Essa descoberta fez com que os pesquisadores deixassem de buscar o que distinguia cada grupo e tentassem identificar o que possuíam em comum: o fato de as crianças terem sido criadas em condições de pobreza. Para entender o ambiente dessas crianças, eles passaram a visitar suas famílias e a fazer perguntas padronizadas. Indagaram se os pais tinham em casa pelo menos dez livros infantis, se os pequenos ouviam canções, se tinham brinquedos que favorecessem o aprendizado dos números. Também ficaram atentos para ver se os pais se dirigiam aos filhos de modo afetuoso, se respondiam com paciência às suas dúvidas e se os abraçavam, beijavam e elogiavam.
Uma das conclusões da pesquisa foi que as crianças que recebiam em casa mais atenção e cuidados exibiam uma clara propensão para ter QI mais alto. As crianças expostas a um volume maior de estímulos cognitivos desincumbiam-se melhor de exercícios com a linguagem, ao passo que as tratadas de forma calorosa se saíam melhor em testes de memória.
Muitos anos depois, quando essas mesmas crianças chegaram à adolescência, os pesquisadores as submeteram a exames de ressonância magnética do cérebro e associaram os resultados aos dados colhidos na época em que elas tinham 4 e 8 anos de idade e relativos à maneira mais ou menos estimulante como haviam sido criadas. O que se constatou foi um claro vínculo entre os estímulos até os 4 anos e as dimensões do hipocampo – região do cérebro associada à memória –, mas não se achou nenhuma correlação desse tipo aos 8 anos. Tais resultados demonstram como é fundamental um ambiente emocionalmente propício nos primeiros anos de vida.
Esse estudo, realizado na Filadélfia e divulgado em 2010, foi um dos primeiros a demonstrar que as experiências infantis moldam a estrutura do cérebro em desenvolvimento. Desde então, outras pesquisas apontaram uma ligação entre as condições socioeconômicas do bebê e o crescimento de seu cérebro. A despeito de nascer já com uma capacidade assombrosa, o cérebro depende muito dos estímulos ambientais para ampliar ainda mais as conexões entre os neurônios.
Graças a novos equipamentos voltados para a visualização do cérebro infantil, os cientistas estão desvendando o enigma das mudanças por que passam as crianças, que ao nascer mal conseguem enxergar ao seu redor e depois acabam por adquirir a capacidade de falar, andar, desenhar. Quanto mais soubermos sobre como os pequenos adquirem o domínio da língua, dos números e do entendimento emocional nesse período, mais evidente vai se tornar quanto o cérebro do recém-nascido é uma máquina de aprender.
NG - Na Universidade de Washington, pesquisadores estudam a atividade cerebral em bebês por meio de um aparelho de magnetoencefalografia
Na Universidade de Washington, pesquisadores estudam a atividade cerebral em bebês por meio de um aparelho de magnetoencefalografia, que mede o campo magnético ao redor do crânio do bebê e, com isso, revela o esquema de ativação dos neurônios - Foto: Lynn Johnson
Se a metamorfose de um aglomerado de células em um bebê pronto para mamar é um dos grandes milagres da vida, o mesmo vale para a transformação dessa criatura titubeante em uma pessoinha capaz de andar, se expressar e até negociar o horário em que vai para a cama. Enquanto preparava este artigo, pude observar de perto esse milagre: minha filha deixou de ser uma criatura inquieta, que só dispunha de um grito lancinante para avisar que estava com fome, e tornou-se uma animada menina de 3 anos que insiste em usar óculos escuros antes de sair de casa. O florescimento da sua capacidade mental e emocional foi uma sequência de maravilhas, reforçando o meu assombro com a destreza do cérebro infantil para entender o mundo.
Os marcos pelos quais a minha filha passou serão reconhecidos por todos os pais. Aos 2 anos, ela sabia o bastante para se dar conta de que não precisava segurar a minha mão quando andávamos pela calçada – só a buscava quando precisávamos atravessar a rua. Mais ou menos na mesma época, também aprendeu a bloquear o ralo da banheira com o calcanhar – fazendo o que seria uma ducha rápida virar um banho repleto de possibilidades de diversão.
Mesmo depois de milênios criando os filhos, ainda sabemos pouco sobre como os bebês dão esses passos gigantescos em termos de capacidade de entendimento, expressão linguística, raciocínio e planejamento. O acelerado ritmo de desenvolvimento nesses anos iniciais coincide com a formação de uma imensa maçaroca de circuitos nervosos. No nascimento, seu cérebro conta quase uma centena de bilhões de neurônios – tanto quanto um adulto. À medida que o bebê cresce e vai sendo inundado por estímulos sensoriais, os neurônios se interligam uns com os outros, resultando em centenas de trilhões de conexões na época em que a criança tem 3 anos.
Diferentes estímulos e gestos, como ouvir uma canção de ninar ou estender o braço para agarrar um brinquedo, ajudam a estabelecer redes neuronais distintas. E tais circuitos são reforçados por meio de ativações reiteradas. A membrana que envolve as fibras nervosas – feita de um material isolante denominado mielina – vai engrossando nos trajetos usados com maior frequência, permitindo que os impulsos elétricos circulem por ali com mais rapidez. Já os circuitos pouco usados
acabam por se extinguir, ocorrendo o corte das conexões, num processo conhecido como "seleção sináptica". Entre as idades de 1 e 5 anos, e de novo no princípio da adolescência, o cérebro passa por ciclos de crescimento e de eliminação de elementos desnecessários, com as experiências desempenhando um papel crucial na gravação dos circuitos destinados a permanecer.
O MODO COMO A NATUREZA E A CULTURA se associam para moldar o cérebro é evidente sobretudo no desenvolvimento da capacidade linguística. Que porção dessa capacidade é congênita e quanto deve ao aprendizado por parte dos bebês? Para saber como os pesquisadores estão abordando essa questão, conversei com a neurocientista cognitiva Judit Gervain, da Universidade Descartes, em Paris, que realiza experimentos com recém-nascidos.
Eu a acompanho até uma sala que dá no saguão da ala da maternidade. O primeiro bebê daquela manhã é trazido em um carrinho, enrolado em uma manta com bolinhas cor-de-rosa, e acompanhado do pai. Um assistente de pesquisa coloca na cabeça do bebê um gorro repleto de sensores que mais parecem botões. O objetivo é visualizar o cérebro do bebê enquanto são tocadas várias sequências sonoras, como as sílabas nu-ja-ga. Porém, antes mesmo de ser possível qualquer observação, o bebê começa a emitir gritos agudos, deixando bem claro que não está gostando daquilo. Logo o assistente retira o gorro e o bebê é embalado e devolvido aos braços do pai. Outro recém-nascido – também acompanhado do pai – é trazido para a sala. O assistente segue o mesmo protocolo, e dessa vez não há problemas para realizar a visualização.
Adotando um procedimento similar, Judit e seus colegas verificaram em que medida os recém-nascidos conseguiam distinguir diferentes padrões sonoros. Usando um equipamento de espectroscopia na região do infravermelho, os pesquisadores visualizaram o cérebro dos bebês enquanto estes ouviam sequências sonoras. Em alguns casos, os sons eram repetidos segundo um esquema ABB, como em mu-ba-ba; em outros, o esquema era ABC, como em mu-ba-ge. Constatou- se então que as áreas do cérebro encarregadas do processamento da fala e da audição reagiam mais às sequências ABB. Em um estudo posterior, os pesquisadores descobriram que o cérebro do recém-nascido também era capaz de distinguir as sequências do tipo AAB daquelas que seguiam o esquema ABB.
Judit Gervain ficou entusiasmada, pois a ordem dos sons é o fundamento da formação das palavras e das regras gramaticais. "A informação sobre o posicionamento é crucial na linguagem", diz. "Se algo está no começo ou no fim, faz muita diferença: 'João matou o urso' é uma coisa; 'O urso matou João' é outra bem distinta."
O fato de que, desde o início, o cérebro do bebê reage à sequência na qual se dispõem os sons indica que os algoritmos para o aprendizado da língua fazem parte da rede neural com que as crianças vêm ao mundo. "Por muito tempo nos apegamos a uma concepção linear. Primeiro os bebês ouvem os sons, depois passam a entender as palavras isoladas e, em seguida, muitas palavras reunidas", diz Judit. "No entanto, os resultados mais recentes nos dizem que quase tudo começa a se desenvolver a partir do nascimento. Desde o início os bebês já começam a aprender as regras gramaticais."
Sob a orientação da neuropsicóloga Angela Friederici, pesquisadores do Instituto Max Planck de Pesquisas Cognitivas e Neurológicas, na cidade alemã de Leipzig, encontraram indícios desse tipo de entendimento por meio de experimentos nos quais bebês alemães de 4 meses foram postos em contato com línguas pouco familiares. Primeiro os bebês ouviram uma série de frases em italiano representando dois tipos de construção gramatical: "O irmão pode cantar" e "A irmã está cantando". Três minutos depois, ouviam outro grupo de frases italianas, algumas das quais incorretas gramaticalmente, como "O irmão está cantar" e "A irmã pode cantando". Nessa etapa, os pesquisadores mediram a atividade cerebral usando eletrodos fixados na cabeça dos bebês. Na série inicial de testes, constatou-se uma reação cerebral similar tanto para as frases corretas como para as incorretas. Porém, depois de algumas sequências, os bebês passaram a exibir padrões de atividade neural muito distintos quando ouviam as frases incorretas.
Em apenas 15 minutos, os bebês parecem ter absorvido o que era correto. "De algum modo eles devem ter aprendido, mesmo sem entender o significado das frases", diz Angela. "Nessa altura, não é a sintaxe que importa. É a regularidade codificada nos fonemas."
Os pesquisadores comprovaram que, por volta dos 2 anos e meio de idade, as crianças são espertas o bastante para corrigir erros gramaticais cometidos por bonecos. Até os 3 anos, a maioria das crianças domina um conjunto significativo de regras gramaticais. O vocabulário delas cresce sem cessar. Esse florescimento da capacidade linguística ocorre à medida que se formam novas conexões entre os neurônios, a fim de que a fala possa ser processada em múltiplos níveis: som, significado e sintaxe. Ainda resta aos cientistas delinear o roteiro seguido pelo cérebro do bebê para alcançar a fluência linguística. Mas uma coisa é certa, diz Angela: "Não basta apenas ter o equipamento. Também é preciso o estímulo".
NG - Ginny Mooney nina a filha adotiva, Lena
Ginny Mooney nina a filha adotiva, Lena, em Fayetteville, no Arkansas, após uma sessão de terapia corporal e da fala. Em parte devido às condições precárias em um orfanato ucraniano, a menina de 6 anos ainda apresenta dificuldades cognitivas e comportamentais - Foto: Lynn Johnson
Mais de duas décadas atrás, os psicólogos infantis Todd Risley e Betty Hart gravaram centenas de horas de interação entre crianças e adultos pertencentes a 42 famílias oriundas de todo o espectro socioeconômico, acompanhando os menores desde a idade de 9 meses até a de 3 anos.
Ao examinar a transcrição das gravações, Risley e Betty notaram algo surpreendente. As crianças de famílias mais ricas – cujos pais normalmente eram profissionais com curso superior – ouviam em média, por hora, 2 153 palavras especificamente dirigidas a elas, ao passo que as crianças das famílias mais pobres eram alvo de, em média, 616 palavras por hora. Com 4 anos de idade, essa diferença acabava se traduzindo em um lacuna acumulada de cerca de 30 milhões de palavras. Nos lares mais pobres, o mais comum era que os pais fizessem comentários mais breves e mecânicos, como "Pare com isso" ou "Fique sentado", ao passo que nas famílias em melhor situação econômica os pais mantinham com os filhos conversas mais longas e sobre temas variados, estimulando-os a usar a memória e a imaginação. As crianças de famílias no segmento inferior da escala socioeconômica estavam sendo criadas com uma dieta linguística mais restrita.
A quantidade de conversa entre pais e filhos faz muita diferença. Aos 3 anos de idade, as crianças com as quais se havia conversado mais obtiveram melhores resultados nos testes de inteligência. E também se saíram melhor na escola quando chegaram às idades de 9 e 10 anos.
Expor as crianças a uma quantidade maior de palavras parece ser algo bem simples. No entanto, quando são transmitidas pela televisão, internet ou celulares – mesmo que sejam programas educativos –, tais palavras não parecem ter o mesmo efeito. Foi o que comprovaram os pesquisadores liderados pela neurocientista Patricia Kuhl, em um estudo realizado na Universidade de Washington, em Seattle, com bebês de 9 meses.
Patricia e seus colaboradores estavam investigando um dos nós cruciais na aquisição da linguagem: o modo como os bebês se concentram nos sons fonéticos de sua língua materna com 1 ano de idade. Nos primeiros meses de vida, eles demonstram habilidade para discriminar os sons de qualquer língua, materna ou estrangeira. Entre 6 e 12 meses, porém, começam a perder a capacidade para fazer tais distinções em línguas estrangeiras, ao mesmo tempo que aprendem a discriminar melhor os sons da língua materna. Os bebês japoneses, por exemplo, deixam de distinguir os sons representados pelas letras "l" e "r".
No estudo, os cientistas colocaram bebês de 9 meses, de famílias de língua inglesa, em contato com o principal dialeto chinês, o mandarim. Algumas crianças interagiram com tutores cuja língua materna era o chinês e que brincaram e leram para elas. "Os bebês ficaram encantados com esses tutores", conta Patricia. Um outro grupo de crianças viu e ouviu os mesmos tutores falando em mandarim, mas apenas por meio de gravações em vídeo. E um terceiro grupo de bebês apenas ouviu a trilha sonora dessas gravações.
Os pesquisadores esperavam que as crianças que tinham assistido aos vídeos apresentassem o mesmo nível de aprendizado daquelas que haviam tido um contato pessoal com os tutores. No entanto, o que constataram foi uma diferença enorme. Aquelas que tiveram contato com os tutores por meio de interações humanas tinham a mesma capacidade de distinguir entre sons similares em mandarim do que os ouvintes nativos. Já os outros bebês – tanto os que haviam assistido aos vídeos como os que ouviram os áudios – não conseguiam distinguir nada.
"Ficamos absolutamente assombrados", relata Patricia. "Era um resultado que nos forçava a mudar de modo radical a nossa concepção do cérebro." Em consequência desse e de outros estudos, ela foi levada a propor o que chama de hipótese do "portal social": a ideia de que o contato social é um portal para o desenvolvimento linguístico, cognitivo e emocional.
APÓS CONQUISTAR O PODER na Romênia, em meados da década de 1960, o líder comunista Nicolae Ceausescu adotou medidas drásticas para transformar o país e acelerar a transição de uma sociedade agrícola para outra industrial. Visando ao crescimento demográfico, o regime restringiu os métodos anticoncepcionais e a prática do aborto, chegando a taxar casais com mais de 25 anos que permaneciam sem filhos. Milhares de famílias se mudaram dos vilarejos rurais para as cidades a fim de trabalhar nas fábricas estatais. Tais políticas levaram muitos pais a abandonar os filhos recém-nascidos, que acabavam em uma instituição oficial conhecida como leagan – o termo em romeno que designa "berço".
Apenas após a derrubada de Ceausescu, em 1989, o resto do mundo pôde avaliar as terríveis condições em que essas crianças haviam sido criadas. Quando bebês, eram largados sozinhos no berço durante horas. Só tinham contato humano durante o dia e nas vezes em que o cuidador – cada qual responsável por 15 a 20 crianças – aparecia para lhes dar comida ou banho. Mesmo depois de 1989, esse sistema de cuidados institucionais demorou a ser remediado. Em 2001, teve início um estudo, abrangendo 136 crianças de seis instituições, para avaliar o impacto dessa negligência no desenvolvimento infantil.
Os pesquisadores, liderados pelo psiquiatra Charles Zeanah, da Universidade de Tulane, pelo psicólogo do desenvolvimento e neurocientista Nathan Fox, da Universidade de Maryland, e pelo neurocientista Charles Nelson, da Universidade Harvard, ficaram espantados com os comportamentos aberrantes das crianças. Muitas delas, com menos de 2 anos de idade no início do estudo, não demonstravam o menor apego aos cuidadores. Quando incomodadas, não pediam ajuda. "Em vez disso, exibiam um comportamento quase selvagem que nunca víramos antes – vagando sem objetivo de um lado para o outro, batendo a própria cabeça no chão, rodopiando e se imobilizando no mesmo local", conta Fox.
Ao submeterem essas crianças a eletroencefalogramas, os pesquisadores constataram que os sinais de atividade cerebral eram mais débeis do que os registrados em crianças da mesma idade na população em geral. "É como se um botão de intensidade tivesse sido usado para abafar a atividade de seu cérebro", afirma Fox. Em seguida, ele e seus colegas colocaram metade das crianças em lares adotivos, escolhidos com a ajuda de assistentes sociais. A outra metade continuou a viver nos orfanatos. As famílias de adoção receberam uma ajuda mensal em dinheiro, livros, brinquedos, fraldas e outros suprimentos, assim como visitas regulares dos assistentes sociais.
NG - Na escola Waldorf da Ilha Whidbey, a noroeste de Seattle, os alunos brincam com fardos de palha
Na escola Waldorf da Ilha Whidbey, a noroeste de Seattle, os alunos brincam com fardos de palha. A filosofia da escola é que as brincadeiras livres são essenciais para o desenvolvimento físico, cognitivo, linguístico e social das crianças pequenas - Foto: Lynn Johnson
Nos anos seguintes, a equipe notou as diferenças dramáticas que surgiram entre os dois grupos. Com 8 anos, as crianças que desde os 2 anos ou mesmo antes haviam passado a viver em lares adotivos mostraram padrões de atividade cerebral equivalentes aos das crianças normais da mesma faixa etária na população em geral. Já as crianças que haviam permanecido nos orfanatos continuaram a apresentar sinais cerebrais mais fracos. Embora todos os participantes da pesquisa tivessem cérebro com um volume abaixo do normal para sua idade, aqueles que passaram a viver em lares adotivos apresentavam mais matéria branca – formada pelos axônios que conectam os neurônios – do que as crianças institucionalizadas. "Isso indica que se formaram mais conexões neurais nas crianças adotadas", explica Fox.
A diferença mais significativa entre os dois grupos de crianças – e que ficou evidente por volta dos 4 anos de idade – foi na capacidade de relacionamento social. "Muitas crianças que passaram a viver com famílias, sobretudo aquelas retiradas ainda pequenas dos orfanatos, agora conseguiam se relacionar com os cuidadores de maneira mais parecida com a de uma criança normal", explica Fox. "No princípio da vida, há no cérebro plasticidade suficiente para que as crianças superem as experiências negativas." E esta, segundo Fox, é a melhor notícia: alguns dos efeitos debilitadores da carência inicial de estímulos podem ser revertidos por meio de cuidados apropriados, mas apenas se isso ocorrer em uma etapa crítica do desenvolvimento.
UM PROGRAMA DE TREINAMENTO DE PAIS, coordenado pela neurocientista Helen Neville, da Universidade do Oregon, tem exatamente esse objetivo. Os pesquisadores selecionaram os participantes dentre as famílias incluídas no Head Start, um programa do governo americano para melhorar as condições iniciais das crianças em famílias de baixa renda. Uma vez por semana, durante dois meses, os pais ou os cuidadores participam de uma sessão de treinamento. Nas primeiras aulas, eles aprendem técnicas para aliviar a tensão causada pelo cuidado diário das crianças. Como bem sabe qualquer pai, essa tensão pode alcançar níveis insuportáveis até para os mais calmos, e a situação é ainda mais estressante quando a família enfrenta problemas financeiros.
No treinamento, os pais aprendem a insistir no reforço positivo, elogiando a criança toda vez que ela cumpre determinadas tarefas. "Nós os incentivamos a mudar de perspectiva para que, em vez de repreender os filhos quando fazem algo errado, eles passem a notar e elogiar toda vez que fazem algo certo", explica Sarah Burlingame, ex-instrutora no programa. Nas semanas finais, os pais aprendem a incentivar as crianças.
Em sessões semanais de 40 minutos, as próprias crianças desenvolvem seu autocontrole. Elas são incentivadas a se concentrar em uma tarefa em meio a distrações – por exemplo, colorir figuras enquanto outras crianças brincam com bexigas ao redor. Os instrutores também as ensinam a identificar melhor suas emoções.
Encerradas as oito semanas, os pesquisadores avaliam as crianças em aspectos como linguagem, inteligência e atenção. Por meio de um questionário para os pais, também determinam como elas estão se saindo em termos comportamentais. Em artigo publicado em julho de 2013, Helen e seus colaboradores relatam que as crianças no Head Start que também participaram da pesquisa apresentaram uma melhora bem maior nesses aspectos do que as não participantes. E os pais conseguiram lidar com as crianças de forma bem menos tensa do que antes. "Quando a gente muda o modo de agir dos pais no sentido de reduzir o estresse, a consequência para os filhos são um maior autocontrole emocional e uma melhor capacidade de entendimento", afirma Helen.
Tana Argo, uma jovem mãe com quatro filhos, decidiu participar do programa para assegurar que seus filhos não sofreriam o tipo de negligência de que ela própria foi alvo. "Cresci em meio a situações dramáticas", conta. "Aí, disse a mim mesma: vou me lembrar disso ao criar os meus filhos. Para que isso não aconteça com eles."
E o que aprendeu, diz ela, mudou de fato a dinâmica da família, criando mais oportunidades para as brincadeiras e o aprendizado. Quando, certa tarde, vou visitá-la em sua casa, ela descreve como alguns dias antes se sentira feliz ao ver a filha de 4 anos – a mais jovem – se acomodar no tapete e explorar uma enciclopédia para crianças. Quando eu estou saindo, vejo a enciclopédia sobre um monte de livros, quase todos também infantis. Na melhor hipótese, essa pilha talvez sirva de muralha contra as consequências da miséria e do abandono legadas de uma geração a outra, permitindo que os filhos de Tana construam um futuro a que ela própria não teve acesso.
Essa descoberta fez com que os pesquisadores deixassem de buscar o que distinguia cada grupo e tentassem identificar o que possuíam em comum: o fato de as crianças terem sido criadas em condições de pobreza. Para entender o ambiente dessas crianças, eles passaram a visitar suas famílias e a fazer perguntas padronizadas. Indagaram se os pais tinham em casa pelo menos dez livros infantis, se os pequenos ouviam canções, se tinham brinquedos que favorecessem o aprendizado dos números. Também ficaram atentos para ver se os pais se dirigiam aos filhos de modo afetuoso, se respondiam com paciência às suas dúvidas e se os abraçavam, beijavam e elogiavam.
Uma das conclusões da pesquisa foi que as crianças que recebiam em casa mais atenção e cuidados exibiam uma clara propensão para ter QI mais alto. As crianças expostas a um volume maior de estímulos cognitivos desincumbiam-se melhor de exercícios com a linguagem, ao passo que as tratadas de forma calorosa se saíam melhor em testes de memória.
Muitos anos depois, quando essas mesmas crianças chegaram à adolescência, os pesquisadores as submeteram a exames de ressonância magnética do cérebro e associaram os resultados aos dados colhidos na época em que elas tinham 4 e 8 anos de idade e relativos à maneira mais ou menos estimulante como haviam sido criadas. O que se constatou foi um claro vínculo entre os estímulos até os 4 anos e as dimensões do hipocampo – região do cérebro associada à memória –, mas não se achou nenhuma correlação desse tipo aos 8 anos. Tais resultados demonstram como é fundamental um ambiente emocionalmente propício nos primeiros anos de vida.
Esse estudo, realizado na Filadélfia e divulgado em 2010, foi um dos primeiros a demonstrar que as experiências infantis moldam a estrutura do cérebro em desenvolvimento. Desde então, outras pesquisas apontaram uma ligação entre as condições socioeconômicas do bebê e o crescimento de seu cérebro. A despeito de nascer já com uma capacidade assombrosa, o cérebro depende muito dos estímulos ambientais para ampliar ainda mais as conexões entre os neurônios.
Graças a novos equipamentos voltados para a visualização do cérebro infantil, os cientistas estão desvendando o enigma das mudanças por que passam as crianças, que ao nascer mal conseguem enxergar ao seu redor e depois acabam por adquirir a capacidade de falar, andar, desenhar. Quanto mais soubermos sobre como os pequenos adquirem o domínio da língua, dos números e do entendimento emocional nesse período, mais evidente vai se tornar quanto o cérebro do recém-nascido é uma máquina de aprender.
NG - Na Universidade de Washington, pesquisadores estudam a atividade cerebral em bebês por meio de um aparelho de magnetoencefalografia
Na Universidade de Washington, pesquisadores estudam a atividade cerebral em bebês por meio de um aparelho de magnetoencefalografia, que mede o campo magnético ao redor do crânio do bebê e, com isso, revela o esquema de ativação dos neurônios - Foto: Lynn Johnson
Se a metamorfose de um aglomerado de células em um bebê pronto para mamar é um dos grandes milagres da vida, o mesmo vale para a transformação dessa criatura titubeante em uma pessoinha capaz de andar, se expressar e até negociar o horário em que vai para a cama. Enquanto preparava este artigo, pude observar de perto esse milagre: minha filha deixou de ser uma criatura inquieta, que só dispunha de um grito lancinante para avisar que estava com fome, e tornou-se uma animada menina de 3 anos que insiste em usar óculos escuros antes de sair de casa. O florescimento da sua capacidade mental e emocional foi uma sequência de maravilhas, reforçando o meu assombro com a destreza do cérebro infantil para entender o mundo.
Os marcos pelos quais a minha filha passou serão reconhecidos por todos os pais. Aos 2 anos, ela sabia o bastante para se dar conta de que não precisava segurar a minha mão quando andávamos pela calçada – só a buscava quando precisávamos atravessar a rua. Mais ou menos na mesma época, também aprendeu a bloquear o ralo da banheira com o calcanhar – fazendo o que seria uma ducha rápida virar um banho repleto de possibilidades de diversão.
Mesmo depois de milênios criando os filhos, ainda sabemos pouco sobre como os bebês dão esses passos gigantescos em termos de capacidade de entendimento, expressão linguística, raciocínio e planejamento. O acelerado ritmo de desenvolvimento nesses anos iniciais coincide com a formação de uma imensa maçaroca de circuitos nervosos. No nascimento, seu cérebro conta quase uma centena de bilhões de neurônios – tanto quanto um adulto. À medida que o bebê cresce e vai sendo inundado por estímulos sensoriais, os neurônios se interligam uns com os outros, resultando em centenas de trilhões de conexões na época em que a criança tem 3 anos.
Diferentes estímulos e gestos, como ouvir uma canção de ninar ou estender o braço para agarrar um brinquedo, ajudam a estabelecer redes neuronais distintas. E tais circuitos são reforçados por meio de ativações reiteradas. A membrana que envolve as fibras nervosas – feita de um material isolante denominado mielina – vai engrossando nos trajetos usados com maior frequência, permitindo que os impulsos elétricos circulem por ali com mais rapidez. Já os circuitos pouco usados
acabam por se extinguir, ocorrendo o corte das conexões, num processo conhecido como "seleção sináptica". Entre as idades de 1 e 5 anos, e de novo no princípio da adolescência, o cérebro passa por ciclos de crescimento e de eliminação de elementos desnecessários, com as experiências desempenhando um papel crucial na gravação dos circuitos destinados a permanecer.
O MODO COMO A NATUREZA E A CULTURA se associam para moldar o cérebro é evidente sobretudo no desenvolvimento da capacidade linguística. Que porção dessa capacidade é congênita e quanto deve ao aprendizado por parte dos bebês? Para saber como os pesquisadores estão abordando essa questão, conversei com a neurocientista cognitiva Judit Gervain, da Universidade Descartes, em Paris, que realiza experimentos com recém-nascidos.
Eu a acompanho até uma sala que dá no saguão da ala da maternidade. O primeiro bebê daquela manhã é trazido em um carrinho, enrolado em uma manta com bolinhas cor-de-rosa, e acompanhado do pai. Um assistente de pesquisa coloca na cabeça do bebê um gorro repleto de sensores que mais parecem botões. O objetivo é visualizar o cérebro do bebê enquanto são tocadas várias sequências sonoras, como as sílabas nu-ja-ga. Porém, antes mesmo de ser possível qualquer observação, o bebê começa a emitir gritos agudos, deixando bem claro que não está gostando daquilo. Logo o assistente retira o gorro e o bebê é embalado e devolvido aos braços do pai. Outro recém-nascido – também acompanhado do pai – é trazido para a sala. O assistente segue o mesmo protocolo, e dessa vez não há problemas para realizar a visualização.
Adotando um procedimento similar, Judit e seus colegas verificaram em que medida os recém-nascidos conseguiam distinguir diferentes padrões sonoros. Usando um equipamento de espectroscopia na região do infravermelho, os pesquisadores visualizaram o cérebro dos bebês enquanto estes ouviam sequências sonoras. Em alguns casos, os sons eram repetidos segundo um esquema ABB, como em mu-ba-ba; em outros, o esquema era ABC, como em mu-ba-ge. Constatou- se então que as áreas do cérebro encarregadas do processamento da fala e da audição reagiam mais às sequências ABB. Em um estudo posterior, os pesquisadores descobriram que o cérebro do recém-nascido também era capaz de distinguir as sequências do tipo AAB daquelas que seguiam o esquema ABB.
Judit Gervain ficou entusiasmada, pois a ordem dos sons é o fundamento da formação das palavras e das regras gramaticais. "A informação sobre o posicionamento é crucial na linguagem", diz. "Se algo está no começo ou no fim, faz muita diferença: 'João matou o urso' é uma coisa; 'O urso matou João' é outra bem distinta."
O fato de que, desde o início, o cérebro do bebê reage à sequência na qual se dispõem os sons indica que os algoritmos para o aprendizado da língua fazem parte da rede neural com que as crianças vêm ao mundo. "Por muito tempo nos apegamos a uma concepção linear. Primeiro os bebês ouvem os sons, depois passam a entender as palavras isoladas e, em seguida, muitas palavras reunidas", diz Judit. "No entanto, os resultados mais recentes nos dizem que quase tudo começa a se desenvolver a partir do nascimento. Desde o início os bebês já começam a aprender as regras gramaticais."
Sob a orientação da neuropsicóloga Angela Friederici, pesquisadores do Instituto Max Planck de Pesquisas Cognitivas e Neurológicas, na cidade alemã de Leipzig, encontraram indícios desse tipo de entendimento por meio de experimentos nos quais bebês alemães de 4 meses foram postos em contato com línguas pouco familiares. Primeiro os bebês ouviram uma série de frases em italiano representando dois tipos de construção gramatical: "O irmão pode cantar" e "A irmã está cantando". Três minutos depois, ouviam outro grupo de frases italianas, algumas das quais incorretas gramaticalmente, como "O irmão está cantar" e "A irmã pode cantando". Nessa etapa, os pesquisadores mediram a atividade cerebral usando eletrodos fixados na cabeça dos bebês. Na série inicial de testes, constatou-se uma reação cerebral similar tanto para as frases corretas como para as incorretas. Porém, depois de algumas sequências, os bebês passaram a exibir padrões de atividade neural muito distintos quando ouviam as frases incorretas.
Em apenas 15 minutos, os bebês parecem ter absorvido o que era correto. "De algum modo eles devem ter aprendido, mesmo sem entender o significado das frases", diz Angela. "Nessa altura, não é a sintaxe que importa. É a regularidade codificada nos fonemas."
Os pesquisadores comprovaram que, por volta dos 2 anos e meio de idade, as crianças são espertas o bastante para corrigir erros gramaticais cometidos por bonecos. Até os 3 anos, a maioria das crianças domina um conjunto significativo de regras gramaticais. O vocabulário delas cresce sem cessar. Esse florescimento da capacidade linguística ocorre à medida que se formam novas conexões entre os neurônios, a fim de que a fala possa ser processada em múltiplos níveis: som, significado e sintaxe. Ainda resta aos cientistas delinear o roteiro seguido pelo cérebro do bebê para alcançar a fluência linguística. Mas uma coisa é certa, diz Angela: "Não basta apenas ter o equipamento. Também é preciso o estímulo".
NG - Ginny Mooney nina a filha adotiva, Lena
Ginny Mooney nina a filha adotiva, Lena, em Fayetteville, no Arkansas, após uma sessão de terapia corporal e da fala. Em parte devido às condições precárias em um orfanato ucraniano, a menina de 6 anos ainda apresenta dificuldades cognitivas e comportamentais - Foto: Lynn Johnson
Mais de duas décadas atrás, os psicólogos infantis Todd Risley e Betty Hart gravaram centenas de horas de interação entre crianças e adultos pertencentes a 42 famílias oriundas de todo o espectro socioeconômico, acompanhando os menores desde a idade de 9 meses até a de 3 anos.
Ao examinar a transcrição das gravações, Risley e Betty notaram algo surpreendente. As crianças de famílias mais ricas – cujos pais normalmente eram profissionais com curso superior – ouviam em média, por hora, 2 153 palavras especificamente dirigidas a elas, ao passo que as crianças das famílias mais pobres eram alvo de, em média, 616 palavras por hora. Com 4 anos de idade, essa diferença acabava se traduzindo em um lacuna acumulada de cerca de 30 milhões de palavras. Nos lares mais pobres, o mais comum era que os pais fizessem comentários mais breves e mecânicos, como "Pare com isso" ou "Fique sentado", ao passo que nas famílias em melhor situação econômica os pais mantinham com os filhos conversas mais longas e sobre temas variados, estimulando-os a usar a memória e a imaginação. As crianças de famílias no segmento inferior da escala socioeconômica estavam sendo criadas com uma dieta linguística mais restrita.
A quantidade de conversa entre pais e filhos faz muita diferença. Aos 3 anos de idade, as crianças com as quais se havia conversado mais obtiveram melhores resultados nos testes de inteligência. E também se saíram melhor na escola quando chegaram às idades de 9 e 10 anos.
Expor as crianças a uma quantidade maior de palavras parece ser algo bem simples. No entanto, quando são transmitidas pela televisão, internet ou celulares – mesmo que sejam programas educativos –, tais palavras não parecem ter o mesmo efeito. Foi o que comprovaram os pesquisadores liderados pela neurocientista Patricia Kuhl, em um estudo realizado na Universidade de Washington, em Seattle, com bebês de 9 meses.
Patricia e seus colaboradores estavam investigando um dos nós cruciais na aquisição da linguagem: o modo como os bebês se concentram nos sons fonéticos de sua língua materna com 1 ano de idade. Nos primeiros meses de vida, eles demonstram habilidade para discriminar os sons de qualquer língua, materna ou estrangeira. Entre 6 e 12 meses, porém, começam a perder a capacidade para fazer tais distinções em línguas estrangeiras, ao mesmo tempo que aprendem a discriminar melhor os sons da língua materna. Os bebês japoneses, por exemplo, deixam de distinguir os sons representados pelas letras "l" e "r".
No estudo, os cientistas colocaram bebês de 9 meses, de famílias de língua inglesa, em contato com o principal dialeto chinês, o mandarim. Algumas crianças interagiram com tutores cuja língua materna era o chinês e que brincaram e leram para elas. "Os bebês ficaram encantados com esses tutores", conta Patricia. Um outro grupo de crianças viu e ouviu os mesmos tutores falando em mandarim, mas apenas por meio de gravações em vídeo. E um terceiro grupo de bebês apenas ouviu a trilha sonora dessas gravações.
Os pesquisadores esperavam que as crianças que tinham assistido aos vídeos apresentassem o mesmo nível de aprendizado daquelas que haviam tido um contato pessoal com os tutores. No entanto, o que constataram foi uma diferença enorme. Aquelas que tiveram contato com os tutores por meio de interações humanas tinham a mesma capacidade de distinguir entre sons similares em mandarim do que os ouvintes nativos. Já os outros bebês – tanto os que haviam assistido aos vídeos como os que ouviram os áudios – não conseguiam distinguir nada.
"Ficamos absolutamente assombrados", relata Patricia. "Era um resultado que nos forçava a mudar de modo radical a nossa concepção do cérebro." Em consequência desse e de outros estudos, ela foi levada a propor o que chama de hipótese do "portal social": a ideia de que o contato social é um portal para o desenvolvimento linguístico, cognitivo e emocional.
APÓS CONQUISTAR O PODER na Romênia, em meados da década de 1960, o líder comunista Nicolae Ceausescu adotou medidas drásticas para transformar o país e acelerar a transição de uma sociedade agrícola para outra industrial. Visando ao crescimento demográfico, o regime restringiu os métodos anticoncepcionais e a prática do aborto, chegando a taxar casais com mais de 25 anos que permaneciam sem filhos. Milhares de famílias se mudaram dos vilarejos rurais para as cidades a fim de trabalhar nas fábricas estatais. Tais políticas levaram muitos pais a abandonar os filhos recém-nascidos, que acabavam em uma instituição oficial conhecida como leagan – o termo em romeno que designa "berço".
Apenas após a derrubada de Ceausescu, em 1989, o resto do mundo pôde avaliar as terríveis condições em que essas crianças haviam sido criadas. Quando bebês, eram largados sozinhos no berço durante horas. Só tinham contato humano durante o dia e nas vezes em que o cuidador – cada qual responsável por 15 a 20 crianças – aparecia para lhes dar comida ou banho. Mesmo depois de 1989, esse sistema de cuidados institucionais demorou a ser remediado. Em 2001, teve início um estudo, abrangendo 136 crianças de seis instituições, para avaliar o impacto dessa negligência no desenvolvimento infantil.
Os pesquisadores, liderados pelo psiquiatra Charles Zeanah, da Universidade de Tulane, pelo psicólogo do desenvolvimento e neurocientista Nathan Fox, da Universidade de Maryland, e pelo neurocientista Charles Nelson, da Universidade Harvard, ficaram espantados com os comportamentos aberrantes das crianças. Muitas delas, com menos de 2 anos de idade no início do estudo, não demonstravam o menor apego aos cuidadores. Quando incomodadas, não pediam ajuda. "Em vez disso, exibiam um comportamento quase selvagem que nunca víramos antes – vagando sem objetivo de um lado para o outro, batendo a própria cabeça no chão, rodopiando e se imobilizando no mesmo local", conta Fox.
Ao submeterem essas crianças a eletroencefalogramas, os pesquisadores constataram que os sinais de atividade cerebral eram mais débeis do que os registrados em crianças da mesma idade na população em geral. "É como se um botão de intensidade tivesse sido usado para abafar a atividade de seu cérebro", afirma Fox. Em seguida, ele e seus colegas colocaram metade das crianças em lares adotivos, escolhidos com a ajuda de assistentes sociais. A outra metade continuou a viver nos orfanatos. As famílias de adoção receberam uma ajuda mensal em dinheiro, livros, brinquedos, fraldas e outros suprimentos, assim como visitas regulares dos assistentes sociais.
NG - Na escola Waldorf da Ilha Whidbey, a noroeste de Seattle, os alunos brincam com fardos de palha
Na escola Waldorf da Ilha Whidbey, a noroeste de Seattle, os alunos brincam com fardos de palha. A filosofia da escola é que as brincadeiras livres são essenciais para o desenvolvimento físico, cognitivo, linguístico e social das crianças pequenas - Foto: Lynn Johnson
Nos anos seguintes, a equipe notou as diferenças dramáticas que surgiram entre os dois grupos. Com 8 anos, as crianças que desde os 2 anos ou mesmo antes haviam passado a viver em lares adotivos mostraram padrões de atividade cerebral equivalentes aos das crianças normais da mesma faixa etária na população em geral. Já as crianças que haviam permanecido nos orfanatos continuaram a apresentar sinais cerebrais mais fracos. Embora todos os participantes da pesquisa tivessem cérebro com um volume abaixo do normal para sua idade, aqueles que passaram a viver em lares adotivos apresentavam mais matéria branca – formada pelos axônios que conectam os neurônios – do que as crianças institucionalizadas. "Isso indica que se formaram mais conexões neurais nas crianças adotadas", explica Fox.
A diferença mais significativa entre os dois grupos de crianças – e que ficou evidente por volta dos 4 anos de idade – foi na capacidade de relacionamento social. "Muitas crianças que passaram a viver com famílias, sobretudo aquelas retiradas ainda pequenas dos orfanatos, agora conseguiam se relacionar com os cuidadores de maneira mais parecida com a de uma criança normal", explica Fox. "No princípio da vida, há no cérebro plasticidade suficiente para que as crianças superem as experiências negativas." E esta, segundo Fox, é a melhor notícia: alguns dos efeitos debilitadores da carência inicial de estímulos podem ser revertidos por meio de cuidados apropriados, mas apenas se isso ocorrer em uma etapa crítica do desenvolvimento.
UM PROGRAMA DE TREINAMENTO DE PAIS, coordenado pela neurocientista Helen Neville, da Universidade do Oregon, tem exatamente esse objetivo. Os pesquisadores selecionaram os participantes dentre as famílias incluídas no Head Start, um programa do governo americano para melhorar as condições iniciais das crianças em famílias de baixa renda. Uma vez por semana, durante dois meses, os pais ou os cuidadores participam de uma sessão de treinamento. Nas primeiras aulas, eles aprendem técnicas para aliviar a tensão causada pelo cuidado diário das crianças. Como bem sabe qualquer pai, essa tensão pode alcançar níveis insuportáveis até para os mais calmos, e a situação é ainda mais estressante quando a família enfrenta problemas financeiros.
No treinamento, os pais aprendem a insistir no reforço positivo, elogiando a criança toda vez que ela cumpre determinadas tarefas. "Nós os incentivamos a mudar de perspectiva para que, em vez de repreender os filhos quando fazem algo errado, eles passem a notar e elogiar toda vez que fazem algo certo", explica Sarah Burlingame, ex-instrutora no programa. Nas semanas finais, os pais aprendem a incentivar as crianças.
Em sessões semanais de 40 minutos, as próprias crianças desenvolvem seu autocontrole. Elas são incentivadas a se concentrar em uma tarefa em meio a distrações – por exemplo, colorir figuras enquanto outras crianças brincam com bexigas ao redor. Os instrutores também as ensinam a identificar melhor suas emoções.
Encerradas as oito semanas, os pesquisadores avaliam as crianças em aspectos como linguagem, inteligência e atenção. Por meio de um questionário para os pais, também determinam como elas estão se saindo em termos comportamentais. Em artigo publicado em julho de 2013, Helen e seus colaboradores relatam que as crianças no Head Start que também participaram da pesquisa apresentaram uma melhora bem maior nesses aspectos do que as não participantes. E os pais conseguiram lidar com as crianças de forma bem menos tensa do que antes. "Quando a gente muda o modo de agir dos pais no sentido de reduzir o estresse, a consequência para os filhos são um maior autocontrole emocional e uma melhor capacidade de entendimento", afirma Helen.
Tana Argo, uma jovem mãe com quatro filhos, decidiu participar do programa para assegurar que seus filhos não sofreriam o tipo de negligência de que ela própria foi alvo. "Cresci em meio a situações dramáticas", conta. "Aí, disse a mim mesma: vou me lembrar disso ao criar os meus filhos. Para que isso não aconteça com eles."
E o que aprendeu, diz ela, mudou de fato a dinâmica da família, criando mais oportunidades para as brincadeiras e o aprendizado. Quando, certa tarde, vou visitá-la em sua casa, ela descreve como alguns dias antes se sentira feliz ao ver a filha de 4 anos – a mais jovem – se acomodar no tapete e explorar uma enciclopédia para crianças. Quando eu estou saindo, vejo a enciclopédia sobre um monte de livros, quase todos também infantis. Na melhor hipótese, essa pilha talvez sirva de muralha contra as consequências da miséria e do abandono legadas de uma geração a outra, permitindo que os filhos de Tana construam um futuro a que ela própria não teve acesso.
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