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May 19, 2024

Niilismo e Realidade no #Rashomon de Akira #Kurosawa

  

    ATENÇÃO: Este ensaio contém SPOILERS! E a leitura desta análise me será mais proveitosa se você já tiver assistido ao filme. 
   

 

 


 

       “Num mundo em devir, 'realidade' é sempre só uma simplificação para fins práticos, ou uma ilusão baseada em órgãos grosseiros, ou um descompasso no tempo do devir.
                    A negação e a nihilização  do mundo através da lógica decorrem do fato de termos que contrapor o ser ao não-ser, e, desse modo, o conceito de 'devir' é negado.”                                       Nietzsche, Fragmento Póstumo, SW, v.12, Outono de 1887
                    “Contra o  positivismo, que se detém nos fenômenos, e diz que 'há apenas  situações de fato', eu diria: não, justamente situações de fato não há, há só interpretações.  Não podemos constatar nenhum 'em si': talvez seja um absurdo querer algo assim”.                                       Idem, in 'A Vontade de Poder, Tentativa  de Revaloração de todos Valores', HW, 2, pág 337

RASHOMON    [Filme lançado em 1949, ou seja, 4 anos após a bomba de Hiroshima marcar o final da Segunda Guerra, sua trama se baseia livremente em dois contos do escritor japonês Ryunossuke Akutagawa].

Personagens, em ordem de aparição:

1) Sob o pórtico de Kyoto:
Lenhador,
Monge Andarilho,
Homem passante, que nada sabia do crime,
Bebê recém-nascido;

2) Eventos em meio à floresta:
Casal de viajantes, cujos nomes não são ditos,
Tajomaru, o bandido,
Policial,
Médium.

                              

I) Cenas Iniciais

                              Sob um pórtico abandonado da Kyoto medieval, cujo nome é Rashomon, reúnem-se três pessoas: um monge andarilho, um lenhador e um caminhante em busca de proteção contra a chuva torrencial. Lenhador e religioso  relatam seu horror diante de uma história de estupro seguido de morte violenta, acerca do qual tinham sido chamados a depor perante a autoridade judicial. O viajante, recém-chegado, ouve as palavras desalentadas do monge, que nunca teria visto nada de tão chocante: nem crimes, nem guerras, nem incêndios, nem epidemias.   Desdenhando de suas palavras, o ouvinte o interrompe, alegando não estar ali para ouvir sermões, e que só histórias interessantes merecem ser contadas. Que sejam até mentirosas, isso pouco o incomoda, desde que prendam a atenção pelo interesse. E basta de sermões! Distancia-se, pois, do monge. Eis que o lenhador encoraja-se e vem ao encontro do desconhecido, passando então a narrar a versão do crime que havia passado à polícia. Neste instante, a cena desloca-se: primeiro para a sala do inquérito judicial, depois para o bosque.      
                       

II) A Versão do Lenhador                                     Como fazia todas as manhãs, ele conta, saiu em busca de boa madeira pela mata. Sobre um arbusto deparou-se, subitamente, com algumas peças não usuais ali: um chapéu de mulher, pedaços de roupas, “todos sem valor”. Até que  se viu diante de um cadáver e, apavorado, correu para a cidade a denunciar o achado à polícia. Quando o juiz lhe perguntou se teria ali visto um punhal, o lenhador o nega com veemência.

                           

III) O Depoimento do Monge                                                              Ele narra à autoridade judicial, em tom melancólico, ter cruzado com o homem agora morto, quando este vinha pela estrada a pé, a puxar o cavalo sobre o qual seguia sua mulher.  Tal ocorrera há uns três dias. Ela usava um chapéu de abas largas, com um véu a encobrir-lhe toda a face. O monge finaliza seu breve relato afirmando que jamais poderia ter previsto que aquele marido terminaria assim, mas que a existência humana é mesmo frágil: “evanescente como o orvalho matinal, e breve como um relâmpago”. Nada diz de mais preciso sobre o corpo da mulher ou sobre sua beleza.                                 

 IV) A Fala do Policial 

                                   Orgulhoso de sua eficiência, alega ter capturado o tão temido Tajomaru facilmente, pois estava caído ao chão à margem de um rio, por certo derrubado pelo próprio cavalo que roubara. Teria tido, pois, um bom castigo com esse fim grotesco, troco pelos males que cometera. Completa ao dizer que entre os tantos crimes estaria, certamente, o que ali no tribunal em que depõe se investiga.

V) A Versão de Tajomaru


         Ao ouvir seu captor dizer que teria sido derrubado do cavalo como castigo, Tajomaru irrompe em risos, e diz que estava ali, à beira-rio, abatido pelo cansaço e pela sede: talvez tivesse bebido água contaminada de alguma fonte... Diz ter matado, sim, aquele homem, ainda que de início não pretendesse fazê-lo. Numa tarde de muito calor, estava deitado sob a copa de uma árvore, à margem da estrada, quando uma brisa suave o acordou.
--- “Não fosse o acaso dessa brisa, nada disso teria acontecido”.
Vê, então, que um homem vem a conduzir um cavalo sobre o qual segue uma bela mulher.  Ao  passarem bem em frente dele, a poucos metros, a mesma brisa ergueu o véu com que a viajante cobria seu rosto, e brotou em Tajomaru desejo intenso e urgente de possuí-la. Mataria o marido, se preciso, embora preferisse de início livrar-se dele de outra maneira. Assim, deixa que sigam ambos por mais um trecho de estrada e, cortando caminho por atalho dentro da mata, irrompe de súbito defronte ao casal.  Ardiloso, oferece uma espada “valiosíssima” àquele marido, e diz poder vender-lhe a preços     muito baixos, não só isso, como ainda muitos outros objetos preciosos que retirara de   túmulos antigos.  Para tanto, bastaria que seguissem mata adentro, até o esconderijo desses bens todos.
E a assim os dois homens fizeram, deixando a mulher sozinha com o cavalo à margem da trilha, da estrada. Em meio à floresta, Tajomaru captura seu rival, e o prende com cordas e mordaça, deixando-o sentado numa pequena clareira, incapaz de qualquer tipo de movimento. Dispara agora em direção ao local em que estava a mulher sozinha, já facilmente a seu alcance... Ao encontrá-la, lhe diz que seu marido havia sido mordido por uma cobra. Sem véu, seu rosto denota intenso sofrimento, e essa demonstração de forte apego pelo marido, confessa Tajomaru lhe ter despertado intensa inveja e muito ódio. Face a isso, muda seus planos: decide levá-la à mesma clareira em que o acorrentado permanecia e, para humilhá-lo ao máximo, possuí-la diante de seus olhos. E é o que faz: depois de algum gasto de força com lutas e tentativas de fuga, o estupro se consuma defronte ao marido impotente.
Contudo, sobrevém elemento inesperado: a esposa estuprada acaba cedendo a seu violador, e participa ativa e voluptuosamente do ato sexual. Ainda segundo o relato do bandido, o desenlace dessa história não teria sido o assassinato, não fosse a reação dela quando após o gozo, viu que Tajomaru pretendia partir só. Irrompeu em súplicas, alegando não poder continuar viva assim, e que um dos dois homens teria que morrer. Dizendo, altivo, que não teria tido nenhum gosto especial em tê-la possuído – 'tão igual a tantas outras' – vê-se levado a lutar pelo desafio proposto a seu orgulho. Solta, então, o prisioneiro e dá-lhe uma espada. Sobrevém luta feroz, em que o marido denota ser o melhor de todos os espadachins jamais por ele enfrentados, mas que, apesar disso, termina com sua própria vitória e a morte do outro. Terminado o duelo, não teria mais visto a mulher que, provavelmente, teria fugido apavorada em meio à luta.
Quando o juiz lhe pergunta se ali  havia visto um punhal, Tajomaru confirma, e diz ser valioso, e que tê-lo deixado na clareira havia sido uma “distração tola”.
Tajomaru só parece ter uma razão para mentir: o orgulho. Bandido conhecido por ser assassino e perigoso, seria morto de qualquer forma, ele mesmo diz.  Não buscava atenuante penal.

VI) O Depoimento da Mulher

 Após ter sido estuprada por aquele criminoso, chorava em meio à clareira, até que voltou seus olhos para seu marido acorrentado. Ele a encarava com intenso e desdenhoso ódio: mirava-a com olhos frios e aterrorizantes. Suplicou-lhe que parasse de olhá-la desse modo, inúmeras vezes, sem qualquer êxito em ser ouvida. Implorou, então, que a matasse, mas ele deu a entender que não tinha sequer interesse nisso. E continuava com o mesmo olhar fixo e odiosamente dirigido a ela, cujo desespero só crescia. Até que pegou o punhal e, lentamente, dirigiu-o contra o peito dele. Todavia, não possui a certeza de tê-lo  matado, pois desmaiou subitamente e, ao acordar, o marido estava, de fato, morto por uma punhalada no peito. Pensa que só mesmo ela poderia tê-lo atingido, mesmo que já inconsciente. Seu relato culmina numa intensa crise de choro, em que conta ter tentado suicidar-se depois disso, ao lançar-se num rio.

VII) Versão do Morto, via médium


                               “Os mortos não falam”, diz o lenhador, zombando desse depoimento.
                              “Os mortos não mentem”, retruca o monge, que passa a narrar o que a médium transmitiu. A cena muda, então, novamente para o local do estupro, em meio à mata.
                              Após ter violentado a mulher, Tajomaru tentava convencê-la a ir-se  embora com ele, abandonando o marido. Faria, por ela, qualquer coisa, deixaria sua vida errante para viver como mais um trabalhador humilde da cidade. Nesses momentos, logo após o estupro, o morto afirma ter visto uma beleza extrema em sua mulher, até então desconhecida. E estava certo de que ela não cederia às suplicas do bandido para segui-lo para uma vida nova. Decepcionou-se por completo: sua esposa  aceitava partir com Tajomaru, mas lhe pede que, antes disso, mate seu marido covardemente.
                              Ambos os homens, indignaram-se ao extremo, e o estuprador voltou-se agora contra ela: dominou-a pela força, e perguntou ao marido se queria que a matasse. Não teve resposta.
                              “Perdoei Tajomaru por tudo o que fizera, diante desse seu ato.”
                              Em seguida, ela foge pela mata a correr, e o salteador vai atrás a persegui-la. Passado algum tempo, ele volta à clareira e solta-lhe das cordas, dizendo palavras de consolo: “agora é cuidar da vida”.
                              Entretanto, face a tudo o que transcorrera, opta por matar-se enterrando o punhal em seu próprio peito.
                              Depois de algum tempo, sente que alguém se aproxima e lhe retira  a arma do tórax. Não pôde saber quem fosse, pois já estava então morto, nas trevas de onde faz esse depoimento. 
                                                          

VIII) A Segunda Versão do Lenhador 

                              Sob o pórtico Rashomon, o lenhador insiste que esse último relato é também mentiroso, já que não havia punhal algum e, na verdade, ocorrera, sim, luta de espadas entre os homens. Como, porém, podia ele saber disso com tanta certeza se só chegara bem depois do estupro, da violência e da morte? O caminhante o desafia  a contar a verdade, uma vez que ficou evidente que mentiu em seu relato.
                              Admite, então, ter mentido sim à polícia, para não envolver-se, e conta uma nova sequência de fatos: ao chegar à mata, Tajomaru tentava convencer aquela mulher a fugir com ele, sem êxito. O marido estava atado por cordas, assistindo a tudo. Diante dos convites do estuprador, ela responde que uma mulher não é capaz de responder com clareza esse tipo de pergunta. Subitamente, toma de uma espada e liberta seu esposo, lançando-se ao chão,  meio caminho entre ambos. O assaltante diz que está pronto para o duelo, que entende ser o que ela vê como solução. Seu rival, porém, ergue-se dizendo que por tal mulher já não lutaria, e que Tajomaru ficava livre para levá-la consigo se quisesse. Dessa humilhação segue-se que ela os instiga fortemente à luta, chamando a ambos de covardes.
                              A luta de espadas, porém, é narrada aqui como bem diversa daquela descrita por Tajomaru. Este treme muito de medo, e ambos os rivais fogem um do outro mais que tudo. Pouco cruzam suas espadas. Assim, o desfecho é favorável ao assaltante por mero acaso.
                              Segundo o lenhador, não havia punhal nenhum.

IX) Cenas Finais

                              Lenhador, caminhante e monge continuam juntos sob o Rashomon , a observar uma chuva torrencial. Seu barulho talvez abafe o som das estórias que os homens se contam. Em dado momento, o andarilho diz ao religioso: os seres humanos estão sempre a precisar esquecer alguma coisa, daí inventarem tantas mentiras. Lembremos que esse mesmo andarilho dissera: “não me incomodo com mentiras, desde que sejam interessantes”. Além de ter dito detestar sermões. Volta-se agora para o humilde trabalhador da floresta e diz que não acredita em sua versão dos fatos, pois certamente foi ele quem roubou o punhal. Irado, o acusado diz que não é mentiroso, ao que o andarilho retruca que ninguém avisa antes de mentir. O acusado, então, se cala.  
                              Pouco tempo se passa, e se ouve ali o choro bem próximo de um recém-nascido. O caminhante apressa-se em ir em busca dele. Entretanto, monge e lenhador exasperam-se ao ver que não tinha ido socorrer a criança, mas sim roubar-lhe o amuleto deixado como símbolo de proteção. Eles o recriminam veementemente, pois isso seria crime hediondo. O acusado argumenta em sua defesa que os verdadeiros criminosos haviam sido os genitores do bebê, que tiveram seu gozo, e agora dele se desfaziam dessa forma.
                              “Pense em quanto seus pais sofreram para tomar essa decisão”, diz o lenhador.
                              Nada, porém, muda a determinação do andarilho, que se fez dono do amuleto, e que foge daquelas ruínas sem mais voltar.
                              O monge está, agora, com a criança em seus braços, como que para protegê-lo do mundo absurdo a que acaba de chegar. O camponês tenta pegar de suas mãos o bebê, ao que o religioso reage brusca e medrosamente. Esse gesto, porém, se mostra precipitado, pois o humilde homem diz ter seis filhos, e que uma boca a mais em sua casa não fará as coisas mais difíceis.
                              Arrependido pela atitude brusca, o monge se desculpa e lhe entrega o bebê. Graças à simplicidade da atitude do lenhador, ele diz ter recuperado  sua fé nos seres humanos.
                              Cessa a chuva, o camponês parte com o bebê, termina o filme.

X) Comentário, e talvez a Única Solução.

Citemos Nietzsche ainda outra vez:                       

       "Crítica do Niilismo. O Niilismo, enquanto estado psicológico, terá que sobrevir, num primeiro momento, quando tivermos procurado um 'sentido' em todo o acontecer, que este não tem: de tal modo que quem procura acabe por perder a coragem. Aqui niilismo é o tornar-se consciente do grande desperdício de força, o tormento do 'em vão', a incerteza, a falta de condição para, de um modo qualquer, restabelecer-se, poder ainda descansar sobre uma alguma coisa –a vergonha diante de si próprio, como se se tivesse mentido por tempo demasiado... Esse sentido poderia ter sido: o preenchimento de um cânone moral mais elevado em todo acontecimento, a ordem moral do mundo, ou o crescimento do amor e da harmonia na relação entre os seres; ou a aproximação de um estado de felicidade geral ; ou mesmo o perder-se rumo ao estado geral do nada – uma meta é sempre um sentido. O comum a todas essas formas de representação é que algo deve mesmo ser atingido através do processo – até que se percebe que com o devir nada é atingido, nenhuma meta é alcançada...                                                    (. . .)                                                                                                        "O niilismo enquanto estado psicológico tem ainda uma terceira e última forma. Dados esses achados introspectivos de que com o devir nada será alcançado, e que sob todo devir não atua nenhuma unidade maior, na qual o indivíduo devesse mergulhar por completo, como num elemento de valor maior: assim resta como pretexto julgar todo este mundo do devir como ilusão, e inventar um mundo em que, para além deste, fique como o mundo verdadeiro. Tão logo, porém, o homem descobre o quanto esse último mundo [ideal] é construído só a partir de necessidades psicológicas, e que ele de modo algum tem qualquer direito a isso, então se constitui a última forma de niilismo, que encerra em si a descrença em um mundo metafísico, – e fica proibida a crença num mundo verdadeiro. Sob este ponto de vista, toma-se a realidade do devir como única realidade, proíbe-se toda sorte de rodeios por mundos do além, bem como proíbem-se as falsas divindades – mas já não se suporta mais este mundo, que já não se quer negar... -- O que se passou, basicamente? O sentimento de ausência de valores foi alcançado quando se concebeu que nem com o conceito de “meta”, nem com o conceito de “unidade”, nem com o conceito de verdade se deveria interpretar o caráter total da existência. Assim, nada se alcança, nenhuma meta é atingida; falta a unidade totalizadora da multiplicidade do acontecer: o caráter da existência não é “verdadeiro”, é falso... já não se tem simplesmente nenhuma razão para se crer num mundo verdadeiro...                    "Em suma, as categorias 'meta', 'unidade', 'ser', com as quais depositamos um valor no mundo, são novamente retiradas de nós – e, então, o mundo nos parece sem valor...                                                "O niilismo enquanto estado psicológico acontece, num segundo momento, quando se atribuiu uma totalidade, uma sistematização, mesmo uma organização a todo o acontecer, e sob todo o acontecer.(...). No fundo, o homem perde a crença em seu próprio valor, se através dele não age um todo infinito e valioso, ou seja, o homem concebe esse tal todo para poder crer em seu próprio valor".
{Trecho extraído de 'A Vontade de Poder', Der Wille zur Macht , obra de grande significado para Heidegger, a despeito dos reconhecidos problemas na seleção final de seu conteúdo. Deve-se enfatizar, todavia, que não se discute ter Nietzsche todo o material ali publicado. Discute-se se o autor chegaria a publicá-los como uma única obra, caso não tivesse se tornado bruscamente incapaz, em 1889. Assim, Colli e Montinari, na edição que utilizamos, diluem os seus textos nos “Fragmentos Póstumos” [SW, v 13]}
                         Parece não haver conciliação possível entre os vários relatos dos eventos que se seguiram ao estupro, e que culminaram naquela morte violenta. Antes de serem meros conjuntos de mentiras, versões tão diferentes apontam para uma característica humana bem evidente: somos incapazes de lançar olhares de todo imparciais para o que ocorre a nossa volta, ou mesmo para nós  próprios. Tolice falar em quaisquer perspectivas neutras,  pontos de vista  desinteressados. Nossas paixões sempre nos conduzem, são nossa locomotiva, cujo lema, este sim, poderia ser “Non ducor, duco!”
                       Por outro lado, podemos nos perguntar quem poderia estar à procura do fato verídico, do evento real:
1)   A autoridade policial-judicial, somos levados a pensar, fará matar Tajomaru, mais por seus antecedentes que por este crime, tenha ou não tido responsabilidade na morte daquele  homem. Mas não correria o risco de enviesar a apuração da  verdade deste crime para mostrar eficiência?
2) O espectador de Kurosawa, que tenta durante o desenrolar da trama decifrar o quebra-cabeça, encontrar um sentido único que tudo pudesse tornar compreensível, e que constituísse a realidade dos fatos? Nada simples tal deciframento, que logo parece tarefa impossível. Seria justificada essa tentativa? Não seria cada um de nós mesmos, espectadores, prisioneiro de seu próprio viés de interpretação, decorrente de nossos papéis sociais? De nossas identificações seja com a mulher, com o estuprador, com o lenhador, o sacerdote, o vagabundo ou o marido traído?

Única Solução?

“Os mortos não mentem”, diz o monge.
A razão da mentira de Tajomaru é sua paixão incendiária pela que violentou. De certa forma, se não fosse o acaso, que os gregos diziam ser regido pelas deusas moiras, com sua brisa macia naquele rosto de bandido, e nem crime algum teria ocorrido.  Assume a culpa pela morte para salvar a suposta assassina, dado viverem intensíssima paixão antes, durante e depois do estupro. Ela também faz um relato com certa verossimilhança: tendo desmaiado, não pôde presenciar o suicídio de seu marido, parecendo-lhe provável que fosse quem o matou, ainda que num ímpeto inconsciente. Em seguida, os apaixonados fogem em desvario pela mata, ela à frente. Nesse turbilhão de emoções insensatas, tenta suicidar-se lançando-se às águas de um rio, mas Tajomaru a salva da morte.
Lembremos que a captura dele pelo orgulhoso policial teria sido à beira de um rio, onde se encontrava prostrado, sem qualquer condição de resistir.
O monge, que também é andarilho, mostra-se desesperançoso pelo caráter tão díspar das versões acerca do inusitado evento. Busca um sentido único, verídico, real, mas não o encontra por nada. Por trás da multiplicidade das perspectivas humanas, não há qualquer unidade superior imanente. Quem a busca, nada encontra. Perde por fim as forças e passa a querer o nada.
Se só através da versão de um morto, obtida através de um contato mediúnico é possível ter acesso à verdade, despojada de qualquer paixão, de qualquer interesse, decorrem duas conclusões:

1) O sentido da vida não está neste mundo. Não pode haver qualquer sentido apreensível, tampouco dedutível pela razão, em nossas vidas empíricas. Isto implica em que é impossível aos homens conhecer realidade que não seja transitória e relativa. O real absoluto, se houver valor semântico nesta expressão, nos é transcendente.

2)    Para quem acredita em espíritos, talvez o real fosse acessível por transe mediúnico, como ocorre no Rashomon. Para os demais, realidade será sempre só uma ficção a mais.

O Ser imutável, realidade absoluta, de Parmênides só se pode conceber sob a óptica do Nada.

Outra resposta é: a versão do morto é tão lógica quanto desprovida de sentido. Realidade é ficção tanto quanto o é a crença em espíritos.

Só o devir é, tal como queria Heráclito.              

     Akira Kurosawa, à esq., e Toshiro Mifune (Tajomaru)
     
 

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