O Princípio de Incerteza de Heisenberg: Mecânica Quântica, Neurociências e os Limites do Conhecimento Empírico.
Hoje procurarei esclarecer alguns tópicos referentes à metodologia científica, focando em especial o princípio de incerteza de Heisenberg (mecânica quântica), em busca de uma analogia importante com as descobertas e os limites das neurociências. Ao contrário do que alguns curiosos leitores de orelha de livro ousam opinar em redes sociais da internet, nunca nenhum filósofo, que merecesse este título, duvidou da existência do mundo externo! Jamais houve um filósofo solipsista ontológico. Os que de início postulam dúvidas sobre nossa capacidade de afirmar com certeza qualquer objeto empírico, como Descartes, estão em busca dos limites de nossa capacidade de conhecer, e do uso do método científico. Todavia, materialismo e realismo metafísicos, isto é afirmados como crença por alegada obviedade, ou mesmo por acquaintance como querem alguns, não podem constar dos pressupostos de um verdadeiro cientista, seja qual for sua área. Como escrevi ao residente Thomas (abaixo), nenhuma crença ou crendice deve contaminar a coleta e a análise dos dados empíricos, nem mesmo a mais consensual delas. Comecemos diferenciando tipos de realismo: 1) Realismo ontológico ou metafísico pressupõe que as coisas têm existência por si próprias, independentemente do observador. Isto implica em pressupor tempo e espaço como entidades físicas objetivas, captadas pela sensopercepção humana. Pressupõe que nossos sentidos são capazes de apreender, seja diretamente, seja através da inferência indutiva, algo da essência do mundo externo. Há até mesmo colegas que ainda prefiram dizer-se materialistas, pois só "acreditam na materialidade do cérebro e na alma como ilusão milenar". Materialismo seria aqui um desdobramento desse tipo de realismo ontológico, mas pra darmos alguma validade a ele, precisaríamos antes definir e delimitar com clareza o que é matéria! Seria tudo o que nos vem pelos sentidos? Inclusive a energia? A "matéria escura" seria também matéria, apesar de indetectável até hoje? E a energia escura? Um campo de energia é matéria? E o buraco negro? E o big-bang antes de explodir? E E = mc2 ?E as viagens no tempo, declaradas possíveis em tese pelos físicos, nos levariam a Universos Paralelos? Materiais? O século XX trouxe o desmentido desses postulados ingênuos: tempo e espaço absolutos não fazem mais qualquer sentido, como demonstrou Einstein.A mecânica quântica pôs em questão, também de maneira contundente, não só nossas noções de senso comum de tempo e de espaço, causalidade, como ainda a própria capacidade humana de conhecer: o elétron só pode ser descrito como uma nuvem de probabilidade, pois a determinação de sua localização exata é impossível, dado que ao tentarmos obtê-la o instrumento de medida sempre interfere com a própria localização da partícula! Como sabem, acabo de enunciar o princípio da incerteza de Heisenberg. Explicando melhor: trata-se de uma impossibilidade incontornável, não de limite de nosso método atual de tentar encontrar com exatidão as coordenadas espaço-temporais das partículas. No mundo subatômico é lei inexorável: pra determinar essas coordenadas, só com interação, o que leva incontornavelmente a interferância com a própria posição da partícula. Em nossa área, neurociências e áreas clínicas, em que têm ocorrido avanços gigantescos nas últimas décadas. Nosso objeto por excelência é o cérebro humano, que pode ter transtornos, uns ditos neurológicos, outros ditos psiquiátricos. Mas o que é a mente? Não existe sem cérebro, ponto pacífico para nós nesta sala! Mas tampouco existe a mente sem o outro ser humano, e o convívio social é que nos faz plenos. Tudo o que diz respeito ao ser humano, seja o psiquismo transtornado seja o "normal", está associado a estados cerebrais. Este ponto gera controvérsias e malentendidos de toda sorte! Relembro o postulado não-dualista básico: A todo evento ( estado ou acontecimento ) psíquico tem que corresponder um evento neurofisiológico, seja o evento compreensível ou incompreensível, explicável ou não, normal ou anormal, patológico ou não, etc.Portanto ALERTA: demonstrar que há um achado neurobioquímico numa dada "patologia" psiquiátrica NÃO é suficiente para excluir socio-psicogênese desse mesma patologia. É assustador como esse erro lógico tem sido frequente na literatura neuropsiquiátrica internacional. Não podemos ignorar que todo conteúdo mental tem uma história que começa ao nascer, e que fica registrada no cérebro, biologicamente. E que as interações vivenciais também terminam, obviamente, por manifestar-se no e através do cérebro. Outro dado crucial, para o qual os clínicos muitas vezes não dão a atenção devida: Não existem nem neuronio nem cérebro desconectados do mundo ( isolados ), sejam eles ditos"doentes, normais ou sadios". E para observá-los com eles interferimos, de modo análogo ao do físico ao interferir inevitavelmente com o elétron ao tentar obter suas coordenadas exatas. É fácil ver que vigora aqui também um princípio de incerteza das neurociências e das ciências do comportamento! Ouso afirmar que, na abordagem tradicional, em que os transtornos mentais são ditos sóciogênicos, psicogênicos e organogênicos, o que não pode ir além de uma divisão didática, boa parte da querela interminável e insanável dos sócio/psicogeneticistas contra os "organicistas" poderia ser dissipada com a simples recusa do realismo metafísico ou ingênuo! (Sim, pois a opção idealista já consideramos aqui descartada). Nossos conhecimentos são parciais e finitos, não dizem respeito ao ser-em-si do cérebro, da mente ou da sociedade, mas de uma interação profunda e, em sua essência, incognoscível/transcendental entre essas instâncias. O significado do idealismo transcendental kantiano se resume bem na seguinte frase: jamais atingiremos o conhecimento absoluto. Somos seres finitos, relativos, provisórios, e assim também nosso conhecimento do mundo, das coisas, de nós mesmos! A meu ver não é outra a mensagem do relato bíblico de Adão e Eva provando do fruto da árvore da sabedoria, e em decorrência sendo expulsos do Paraíso: Por julgarem-se os Homens capazes de atingir o saber absoluto, estão condenados ao sofrimento. 2) Realismo instrumental e a distinção ciência e pseudo-ciência: Nossa medicina contemporânea, não só a psiquiatria e as psicoterapias, têm muito que lucrar aqui! A imagem que melhor me parece descrever esta abordagem é pensar as teorias científicas como redes de pesca que lançamos para captar o mundo, imagem que devemos ao grande Karl Popper, filósofo austríaco do século XX. Devemos preservar as teorias enquanto não surgir um dado que a refute, um "peixe que escape à rede". Após conferir por onde peixe passou, devemos procurar outra teoria/rede, que melhor se adapte aos fenômenos, mas esta tem que ser também passível de refutação. Se não for passível de refutação, não é teoria científica. Este, o critério de demarcação entre ciência e não-ciência do mesmo Karl Popper. GENIAL e utilíssimo na prática científica.Pensando um pouco nessa história de substituição de uma teoria por outra melhor, logo percebemos tratar-se de processo infinito. Jamais chegaremos a uma verdade absoluta em ciência. Resposta a pergunta sobre História Social da Clínica: Sim, colega residente Isabel, tudo o que você nos disse sobre a história da clínica e das classificações de doenças, mentais ou não, me parece bem certo. Pergunta de Thomas: Professor Wagner, o senhor argumenta que o verdadeiro cientista não pode jamais carregar crenças entre suas ferramentas cognitivas. Mas qual seu conceito de crença? Parece-me que, sempre que observamos algo, a observação feita passará a fazer parte de uma crença. Nossa mente nunca é uma tabula rasa. Os "ateóricos" DSM-III, IV, IV-TR, na verdade são teóricos. Por exemplo, na esquizofrenia, fica clara a conceituacão kraepeliniana na necessidade do aparecimento do "defeito", sem o qual não se faz o diagnóstico. Em relação à sua observação sobre o neurônio, não me lembro da nossa conversa há 20 anos (parabéns pela sua memória!), mas acho que, realmente, as redes neuronais só podem ser estudadas na sua relação com o ambiente, se quisermos entender a mente. Nossa resposta: Caro Thomas, crença a que me refiro como anticientífica, que deve ficar de fora da nossa bagagem é o postulado irrefutável, o dogma, isto é, aquele cuja refutação o "cientista" ou recusa por princípio, ou não é possível pela própria estrutura lógico-linguística da teoria ou hipótese. Exemplos de refutações interditadas por princípio são: 1) a da 'dialética materialista' na 'ciência' soviética (entre aspas pra lembrar que nada tinha de dialética, nem de ciência!); 2) a alegada 'infalibilidade do papa'; 3) do inconsciente freudiano em certos círculos que se teriam apropriado da obra de Freud. Exemplos de refutação impossível pela sua estrutura lógica são todas as interpretações do tipo 'eles recusam a psicanálise por não saber lidar com seus próprios conflitos edipianos'; ou 'rejeitam a religião por terem falhas morais insanáveis'; ou 'são freudianos porque são moralmente degenerados'; etc. Quanto à nossa mente jamais ser uma tabula rasa, plenamente de acordo! O que precisamos é justamente ter consciência desse limite, e fazer de nossos postulados ( agora não são crenças em sentido próprio ) um uso sempre crítico, recusando hipóteses irrefutáveis por sua estrutura lógica. Quem procura por teorias não refutáveis não deve perder tempo com cientistas seja de que área forem. Obrigado por sua atenção e interesse! |
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May 3, 2022
A Metafísica e o Princípio de Incerteza em Física e nas Neurociências
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