O Jaraguá é a montanha que habita meu coração, desde a primeira em que o vi, apontado por papai a oeste de nosso quintal; eu bebê em seu colo. A rua em que morávamos ia plana até a uns 100 metros de nós, e dali descia feita ladeira rumo ao poente, de modo que da calçada, bem em frente à janela de meu quarto de menino, eu via seus contornos harmoniosamente simétricos.
Nos tramonti de inverno, eu tinha a impressão de que minha montanha engolia o Sol pra trazer a noite. Tramonto é o nome do pôr-do-sol na língua de minha nonna Emilia, que me contava que o Jaraguá tem um irmão gêmeo muito famoso na Italia, perto de Napoli, que não quis acompanhá-lo quando imigrou para a América do Sul, há cerca de novecentos mil anos. Vesúvio teria alegado que não teria nada pra fazer num planalto tão modorrento como o de Piratininga, e que seus próprios e notórios ímpetos dramáticos, traço tão marcante de sua personalidade quente como lava, seriam melhor compreendidos pelo povo da península, essa gente tão linda, e teatral a ponto de ser capaz de inventar o gênero de espetáculo musical chamado ópera.
"Não estaria o povo italiano, dentro e fora da bota, constantemente a encenar uma grande, interminável ópera?" --Perguntou-me Jaraguá quando lhe disse, pela primeira vez, de minha paixão sanguínea pela terra da nonna Emilia. Em seguida me segredou que Vesúvio é apaixonado por La Bohème de Puccini, chegando a derreter-se de emoção ao ouvir a ária Musetta, pois relembra seus amores dos tempos de estudante, tão desencontrados e tão felizes.
Ouvi de xamãs guaranis, que minha montanha tem alma própria e escolhe umas poucas pessoas, em quem percebe o potencial pra compreender sua língua e suas emoções, pra uma amizade eterna. Nisso, lembra um certo morro de Minas Gerais, conhecido de Guimarães Rosa. A um desses seus raros amigos de bate-papo, meu morro teria feito uma revelação aterradora. Disse que a semelhança de suas curvas com as de seu irmão gêmeo, Vesúvio, mais do que ao DNA em comum se deve às erupções iguais às dele, que lhe sobrevêm a cada milhão de anos, aproximadamente, e que
provocam uma chuva densa de rocha incandescente numa área com 49 quilômetros de raio a partir do centro de sua cratera. E acrescentou que, como não falta muito para retornar à atividade ( talvez dias, anos, ou décadas), São Paulo corre mais riscos de se tornar a nova Pompéia do que a Nápoles tão próxima de seu tão famoso irmão.
Vesúvio e as ruínas de Pompéia, destruída por sua erupção de 24 de agosto do ano 79 E.C. pela chuva de rochas piroclásticas que se seguiu à erupção pliniana.
Foto deste autor.
Foto deste autor.
Meu Jaraguá encerrou nosso bate-papo ao sentir-se, de repente, bem triste. Não quis explicar-me por quê. Antes de se recolher no escuro horizonte de uma dessas noites de lua nova, alertou que quando o verde da floresta de sua encosta tiver desaparecido, já nada mais vai conter sua dramática, vulcânica e explosiva crise de ira.
No comments:
Post a Comment
The author looks forward to reading your comments!
O autor aguarda seus valiosos comentários, leitor.