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September 1, 2022

Uma Passarela Por Sobre O Mundo

             
Foto cedida por unsplash.com                
    “Sim, mas quem vai nos curar do fogo surdo, do fogo sem cor que corre ao anoitecer?"            Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha
Quando o conheci éramos estudantes, e pouco contato tínhamos. Houve um único dia em que nossos olhares se cruzaram, nada mais. Nunca tivemos qualquer outro tipo de encontro. Transfigurou-se de imediato, compôs versos curtos e entrecortados, depois se afastou bruscamente, como alguém que vislumbra a possibilidade de algo como Deus, e quer, precisa ou se vê obrigado a prosseguir ateu. Desviou dos meus os seus olhos, como se afastam os olhos do sol forte do meio-dia.
Logo a seguir iniciou-se, bem em frente à janela de meu quarto, aquela  construção. Em pouco dias, e sem que se pudesse entender como, se fez – a transpor a ampla avenida de oito faixas – uma passarela em estilo medieval fiorentino. Sim, uma imensa passarela decorada com afrescos de Giotto. Correram artistas de várias áreas: pintores, escultores, poetas, arquitetos a examiná-la com telescópios, todos se mostravam boquiabertos com seu primor estético, com sua aura hierática. Peritos internacionais cogitaram transportá-la em bloco a uma exposição que ocorreria na própria Padova. Eu não permiti que o fizessem.
Desencontramo-nos por completo, eu e ele. Seguimos vidas separadas, cada qual por seu labirinto de buscas, ilusões, amores, filhos, momentos e espaços. Mal sabíamos se ambos continuávamos vivos. Exceto pelo azul da passarela todos os dias ali. Exceto pelos olhares das figuras dos afrescos.
Sempre soube, desde a primeira noite em que a passarela surgiu, ter sido feita para que eu a cruzasse, sozinha, ninguém a meu lado, nua indo ao encontro dele, vindo do lado oposto. Jamais o fizemos, jamais lá estivemos de corpos nus numa noite quente, acima dos milhares de automóveis trazidos pelo amanhecer, a amar-nos como gatos no cio, como insetos a voar em plena cópula. Não, nunca o fizemos, a despeito de ser esta a finalidade única dessa ponte repleta  de olhares, qual seja, encontrarmo-nos às escondidas pelas madrugadas, como fazem tantos amantes, tantos bichos no cio. Seguimos vida diversa e distante: mal sei onde está durante as tardes, onde passaria suas noites até a madrugada de Lua cheia. Renascemos sob a Lua cheia, como quando nos soubemos feitos para o desejo mais intenso de um pelo outro. Mas somente aqui nesta ponte magnífica, onde nos encontramos visíveis só para as figuras dos  afrescos. Tão lindos esses olhares pintados por Giotto! Ele me diz que aquela é a Beatrice di Dante, e que meu olhar e o dela não são apenas muito semelhantes, mas sim que são um só e o mesmo olhar.
 Não, não poderíamos seguir a vida dos que nos tomam por presentes, quotidianos, pragmáticos, mortais e solitários irremediáveis. Foi por isso que, desde nosso primeiro momento pudemos vir cada um de seu canto da cidade, cada qual por seu lado da passarela e nos encontrar por fim em seu ponto mais alto. Sob a Lua cheia, nossos corpos nus, suavemente ele me acaricia e me beija. Toca-me os seios com sua cálida língua, e os devora. Toca-me as coxas e me penetra tão duro quanto é duro o penetrar do leão em sua fêmea sob uma árvore da savana. Rijo, grosso, suave e meigo, me diz que meus olhos são de fato o Sol, e que com a  força de sua luz pôde construir esta ponte, onde jamais nos encontramos.

Foi em pleno dia que se pôde vê-la nua, a cruzar a passarela, pela primeira vez. Vinha em busca de mim. Parou lá bem ao meio, onde, sem jamais nos encontrarmos, nos possuíamos sob as miradas dos afrescos. Parecia dar pela minha falta. Teve medo de não encontrar-me mais, pois era a primeira madrugada em que se via só sobre a imensa avenida, sob a esplêndida Lua, em meio ao reluzente azul dos afrescos, a aguardar um único instante por nosso encontro.
Nua, em pleno meio-dia, só teus olhos tentavam roubar a beleza de tuas coxas, de teus cabelos, de teus peitos, de tua buceta, de tua boca, de teus pelos, de teus pés. Por não encontrar-me, assim como nunca sobre a passarela estivemos, miraste fixamente os olhos daquela em que Giotto representou a própria Beatrice, e por fim compreendeste. Compreendeste que os verdadeiros amantes são eternos, jamais se encontram, e possuem-se sob a luz da Lua durante as noites quentes de um verão perpétuo, por sobre pontes a cruzar pequenos obstáculos, tais como o mundo. Esse mundo por onde passam os seres humanos com seus automóveis. E que esses corpos amantes se penetram, sim, como os de leões a rugir no cio, por sobre uma transposição criada pelo ardor de seus olhares.

Foi, pois, em pleno meio-dia que pela primeira vez estávamos agora, sim, totalmente nus e tomados pelo mesmo cio intenso nesta passarela que possuímos por sobre o mundo. Já não temo teus olhos, como quando os comparei ao deus Sol ( o que, convenhamos, foi figura bem pobre ). Já não temo teus olhos. Eles são Deus.



"Ninguém vai curar-nos do fogo surdo, do fogo sem cor que corre ao anoitecer"
    J. Cortázar, O Jogo da Amarelinha

Tradução livre do castelhano:

", pero quién nos curará del fuego sordo              del fuego sin color que corre al anochecer? 
Nadie nos curará del fuego sordo, del fuego sin color que corre al anochecer.”
          JC, in Rayuela
                                                

                 

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