Este ensaio dedico à Filósofa Profª Drª Maria Lúcia Cacciola, da Universidade de São Paulo, com quem tive meu primeiro contato com a obra de Schopenhauer, e com a LebensPhilosophie (Filosofia da Vida).
O que pode ser mais pessimista do que acreditar que o fim de tudo está bem próximo? Não a hora da própria morte pessoal, que sabemos de data incerta mas inevitável, mas o fim do mundo e/ou da espécie humana? Pois de tempos em tempos, certamente há séculos e séculos, milênios, multidões se convencem de que vive a humanidade na iminência de sua aniquilação. Chegamos a ter vários fins de mundo anunciados depois de 1950. E estamos em 2012, à espera do solstício de inverno/verão, o término mesterioso do calendário Maya. Ficamos impressionados com a avançadíssima astronomia desse povo: como puderam calcular tão bem um solstício que ocorreria 1000 anos mais tardes? Seriam eles muito mais avançados do que nós, a ponto de saber a verdadeira data de alguma catástrofe planetária?
Por que nós, humanos, tanto pensamos nisso? Seria uma forma de não pensar em nossa própria morte individual e inevitável? Um prazer sádico e alucinatório-delirante de levar a humanidade toda junto?
Haveria um benefício a nossa economia psíquica em crer no doomsday, como sugeriu Freud? E que Nietzsche já havia intuído quando dizia que preferimos "querer o Nada a nada querer"?
Nosso medo de tais profecias parece estar aumentando recentemente. Talvez porque o tempo está aceleradíssimo: a cada dia os homens deixam menos horas para seu lazer, pois não querem perder o bonde dos que querem alcançar o tesouro primeiro:
"No fim do mundo tem um tesouro
Quem foi primeiro carrega o ouro..."
(Trecho de Pois é pra quê, do MPB4)
A criação absurdamente acelerada de novidades tecnológicas, cuja utilidade ninguém sabe, nem pode ou quer parar pra pensar e questionar, trata de tornar nossas vidas cada vez mais curtas em tempo pra nós mesmos, para o pensamento. Ainda que cada vez fiquem mais esticadas, na medida física dos relógios, a vida destas estranhas máquinas a que Deleuze e Gattari chamaram de 'machines desirantes' no Anti-Édipo: nossos corpos.
Nas cenas iniciais de Melancolia de Lars von Trier, as imagens são de morte, pesadíssimas: uma noiva com olhar cadavérico, aves desabando do céu, uma mãe a agarrar sua criança, certa do pior, a Terra por fim engolida por gigantesco e desconhecido astro! Trata-se de um prólogo-epílogo, em que a protagonista Justine, bem como sua irmã Claire, a mãe desesperada face à morte iminente de seu filho ( mais que de toda a Natureza ), aparecem em cenas mudas, de tons surrealistas. Desde o início, portanto, sabemos que não há qualquer esperança!
Seria intenção do roteiro denunciar que o colapso terminal da espécie já é inevitável, e que já não seremos capazes de revertê-lo?
Pessimismo excessivo de Lars von Trier? Schopenhauer foi grande pessimistas ou realista?
A trama restante se divide em 2 partes: 'Justine' e 'Claire', os nomes das duas irmãs. Ao fundo se ouve uma ária lindíssima da ópera Tristão e Isolda, de Richard Wagner.
Em tal ópera, os amantes, os dois protagonistas vivem o mundo da hipocrisia durante o dia, período em que são obrigados a fingir ter aceito o casamento de Isolda com o rei Mark. Encontram-se à noite, levados por intensa paixão.
Para Schopenhauer, tão admirado por Wagner, busca pela satisfação de seus desejos leva os seres humanos a uma vida de hipocrisia, de falsidade irremediável. Na trama de Tristão e Isolda, a isso corresponde o 'dia'. Todavia, o filósofo nos diz que estamos condenados a jamais satisfazer tais quereres profundos, e que só a morte pode libertar-nos. Wagner simboliza aqui a 'noite', a morte, via única de cessação do sofrimento.
PRIMEIRA PARTE: Justine
Pois na primeira parte, Justine, tudo é totalmente falso. Tão falso quanto nosso mundo hiperconsumista e já sem saber para onde ir, sem sentido, sem utopias.
Os noivos tentam ir da igreja (que não aparece) para o casarão do cunhado dela numa limusine branca, imensa. Só que com ela têm que atravessar uma trilha estreitíssima, em que mesmo um jipe 4x4 estaria em apuros. Um absurdo GRITANTE! Claro que não conseguem tirar dali o veículo, mas mesmo assim fazem várias tentativas, impensadas.
A sociedade hiperconsumista, que valoriza a ostentação de riqueza para além dos graus mais absurdos, está representada nessa imensa limusine lutando contra a trilha. A humanidade está destruindo a Terra, em nome de ostentações fúteis, e de 'progressos' inúteis, mas não pára um instante pra refletir e mudar esse triste, melancólico roteiro que a conduz aos piores desastres. E, por que não, pode mesmo levar ao fim de tudo!
Chama a atenção na festa de casamento de Justine, a repetição, totalmente esvaziada de sentido, de estúpidos rituais, sem nenhum espaço para qualquer emoção nova. Todos são autômatos, com a exceção única da noiva, cuja angústia crescente denota uma busca de outro modo de viver. Claire cobra da irmã por seu atraso, John, o cunhado ricaço, repete o eterno mote do "eu posso, eu tenho, pois nado em milhões", o pai da noiva quer mostrar que tem duas mulheres, e é essa sua performance narcísico-machista. O patrão de Justine tenta transformar a festa em show business, em que a noiva lhe deve dizer o slogan de que tanto precisa pra estourar as vendas de uma coisa inútil qualquer. A mercantilização da vida humana é tudo o que interessa no sistema econômico-político de nosso tempo. Os noivos bailam 'La Bamba', o que me impressionou, pois nunca fui a uma festa de casamento em que não se tenha dançado 'La Bamba'. Como o enredo se passa na Dinamarca do diretor, me ocorreu imaginar que a repetição vazia se propaga muito não só no tempo, mas também no espaço. Tudo sempre igual: os noivos cortam seu bolo, de baixo para cima 'pra dar sorte', ele se sente compelido a transar logo após o corte do bolo, e sem reparar no total desinteresse da parceira, em sua intensa angústia. E a festa segue roteiro extremanete rígido, como tudo em nossas vidas contemporâneas: RELÓGIOS, a cada dia mais precisos, inutilmente: centésimos de segundo, depois, milésimos, depois milionésimos, e assim vai. Até o desentendimento dos pais divorciados é o de praxe: pai bêbado, simulacro de galã, mãe autoritária e arrogante, põem-se a discutir, sem nenhuma preocupação com os sentimentos dos noivos ou dos convidados. A mãe diz "não estive na igreja, porque não acredito em igrejas. Odeio casamentos, muito mais ainda quando envolvem minhas pessoas mais próximas e queridas". Cada genitor quer dar o seu show, e esse episódio da eterna guerra dos sexos é propelido por simples egoísmo, por mesquinhez. Nem o machista nem a feminista chegam a pensar nas emoções da filha e de seu par; apenas em seu próprio triunfo individual, marcadamente narcísico, quase autista.
Quando o noivo quer forçar a transa, Justine pede um tempo. Tim, o rapazinho que tem que lhe tirar a saca-rolha o tal slogan, põe-se atrás dela, que foge para o jardim. Ele insiste, e ocorre então algo aparentemente inesperado: ela o faz transar com ela. Seria de fato inesperado em outros tempos, não nos de hoje, de suposta maior liberdade sexual.
Em seguida, o patrão da protagonista e de Tim vem tentar manipulá-la emocionalmente, dizendo que o pobre rapaz está já despedido por não ter realizado a tarefa. A noiva percebe a manobra e, fortemente indignada, diz que ele e sua firma são o nada e a mer...! O empresário milionário da propaganda se ofende, despede Justine, quebra um prato e vai embora da festa.
Ouvi certa vez de uma senhora, que se havia sido professora de publicidade: "O marketing É a verdade!".
Nada original, visto que Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, já pensava assim, chegando a tendo proclamar que "uma mentira dita 1000 vezes se torna verdade"...
Que bom saber que tais pessoas jamais chegarão perto de nossas universidades, onde o que tem que prevalecer é apenas a ciência, jamais essa falsa verdade do mercador, o marketing.
O noivo se sente muito triste, desiste da festa e do próprio casamento.Todos partem.
Essa primeira parte, Justine ( nome de uma heroína do Marquês de Sade ), se encerra com a aproximação crescente do planeta Melancolia, com a inquietação dos cavalos.
O análogo a esse primeiro trecho, na ópera Tristão e Isolda é o 'dia', como já dissemos, o tempo da falsidade completa nas relações humanas, onde ninguém mais sabe a emoção que corresponde a cada gesto que repetem os homens há milênios. Por exemplo, quando alguém fez sua festa de casamento nos primórdios da história, deve ter tido pela primeira vez a idéia de que os noivos juntos cortassem o primeiro pedaço de bolo ( apenas um exemplo, sem preocupação de ser exato). E houve grande emoção e sentido em tal gesto, que muitos começaram a imitar. Hoje, virou ação obrigatória dos noivos! E ninguém vê emoção ou sentido nisso... Tampouco sabe como se justificou no início.
Isso mostra que a vida se esvazia de sentido pela repetição do passado vivido por outros e que, de tanto repetir, nos tornamos autômatos condenados a não saber mais o que é uma emoção genuína, primeva.
Nietzsche aponta aí, analogamente, a inconveniência dos estudos históricos: perdemos a liberdade de viver nossa própria vida, cometendo nosso próprio erro. E isso nos lembra Chico Buarque com seu Cálice:
"Talvez o mundo não seja pequeno (Cale-se!)
Nem seja a vida um fato consumado (Cale-se!)
Quero inventar o meu próprio pecado (Cale-se!)
Quero morrer do meu próprio veneno (Pai! Cale-se!)
Quero perder de vez tua cabeça! (Cale-se!)
Minha cabeça perder teu juízo. (Cale-se!)
Quero cheirar fumaça de óleo diesel (Cale-se!)
Me embriagar até que alguém me esqueça (Cale-se!)"
SEGUNDA PARTE: Claire
( Dada a extensão desta análise de Melancolia, publico agora a Primeira Parte, Justine, mas logo depois virá outra postagem com a análise da Segunda Parte)